A estilista Gabriela Lacerda, de 34 anos, cresceu cercada por comparações com o tio que havia morrido antes mesmo de ela nascer. “Às vezes, eu fazia alguma coisa, e a minha avó dizia que aquilo era muito parecido com ele. Desde pequena, por exemplo, gosto muito de ler, e ela comentava que o meu tio Marcos tinha o mesmo hábito quando criança”, narra Gabriela, de Campinas (SP).
Outras semelhanças entre os dois, dessa vez físicas, puxaram recentemente o fio de uma história inesperada. O arquiteto Rica Oliveira, da mesma cidade que Gabriela, sempre ouviu a mãe contar sobre um amigo que morreu de Aids, nos anos 1980. Na última vez em que conversaram sobre o assunto, ela começou a descrever o colega, de baixa estatura e com um sorriso luminoso, e o rapaz ligou os pontos: tinha uma amiga de infância com o sobrenome e as características dele. Foi como recuperar um elo perdido. “Conversamos por mensagens de áudio e choramos de soluçar”, conta o rapaz. “Minha mãe disse que fazer esse contato com a Gabi foi como se pudesse falar ao Marcos tudo o que gostaria.”
A história narrada pelo arquiteto foi a escolhida para abrir uma série de relatos sobre vítimas brasileiras do HIV que começaram a ser compartilhadas pelo perfil The Aids Memorial, no Instagram, nas últimas duas semanas. Criada em 2017 por Stuart, que vive na Escócia e prefere se identificar apenas pelo primeiro nome para garantir o protagonismo da iniciativa, a página tem mais de 230 mil seguidores, e seu criador já perdeu as contas de quantos relatos foram publicados. “Nunca imaginei que fosse tomar essa proporção”, diz ele, em entrevista por e-mail. “No começo, as postagens eram como algo terapêutico para mim. Só se transformaram num trabalho institucionalizado quando as pessoas passaram a seguir a conta e demonstrar o mesmo interesse pelo assunto.”
De fato, quem rola o feed para baixo se surpreende com a quantidade de personagens retratados, entre pessoas que morreram no auge da epidemia ou convivem com o HIV e falam sobre as suas experiências. São pessoas de diferentes idades e etnias, cujas histórias são apresentadas a partir de relatos sensíveis, publicados em inglês, que vão de encontro à frieza dos números. Afinal, segundo a Unaids, estima-se que 40,1 milhões de pessoas morreram por doenças relacionadas à infecção pelo vírus, desde o início da epidemia. “Há muitas razões que dão sentido à página, mas as pessoas que me enviam as histórias frequentemente dizem o quanto temiam que seus entes queridos fossem esquecidos”, afirma Stuart. “Este era (e ainda é) um assunto cercado por segredo e vergonha. O memorial, de alguma forma, ajuda a mudar isso e mostra que existem pessoas reais por trás das estatísticas.”
Embora o perfil tenha aberto uma seção específica para o Brasil nos últimos dias (o mesmo foi feito com França e Porto Rico anteriormente), relatos brasileiros já apareceram antes e continuarão a ser compartilhados depois, assegura Stuart. “As métricas do Instagram mostram que a base de seguidores brasileiros é muito grande. Acho que isso acontece porque, quando comecei, fiz alguns posts sobre Cazuza, Lauro Corona, Renato Russo, Sandra Bréa e outros famosos. Amo como os brasileiros ficam entusiasmados quando há um post ligado ao país. Dá para ver pela quantidade de comentários.” Ele avisa, inclusive, que está disposto a aceitar e publicar relatos em português, se isso facilitar o compartilhamento de um texto por alguém que queira fazer parte do memorial.
Casos cheios de surpresas e coincidências como o dos amigos de Campinas não são necessariamente uma raridade na página. Histórias do tipo, inclusive, são citadas por Stuart para dimensionar o alcance das postagens.