“Há uma situação na atividade cerebral, a atividade de modo padrão, em que as regiões do cérebro ‘conversam’ justamente quando não estamos fazendo nada. Ao ficar tranquilo, fechar os olhos, deixar rolar seus pensamentos, sem fazer nada específico, isso é um momento de grande criatividade do cérebro”.
Numa noite fria de junho de 1969, o estudante de Medicina Roberto Lent foi preso, levado por militares de sua casa, no Jardim Botânico, zona sul do Rio, até a Ilha das Flores, transformada em quartel pela ditadura. Embora a acusação que pesava sobre ele fosse vaga, o jovem de 21 anos foi jogado em um banheiro improvisado como solitária e ficou incomunicável por 25 dias. “Sozinho, com os piores pensamentos, lutava para não enfraquecer. Resgatei uma estopa que achei ali e dediquei várias horas, de vários dias, a desfiá-la e refiála, transformando-a em um longo barbante que só serviria para conectar minhas emoções desarrumadas”, conta.
Essa história está no livro Existo, Logo Penso: Histórias de um Cérebro Inquieto (Editora ICH), em que o pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or parte de suas experiências pessoais para falar, de forma acessível, sobre os mais recentes trabalhos da neurociência.
1-O que já sabemos sobre como pensam os bebês?
Essa é uma pergunta-chave. A gente sabe pouco porque o acesso é muito difícil quando o bebê está dentro do útero. A gente consegue fazer ressonância morfológica, em que conseguimos ver o formato do cérebro, mas a ressonância funcional é mais difícil. E mesmo que a gente consiga fazer, é difícil interpretar. Mas temos alguns dados interessantes. Por exemplo, um estudo feito com bebês de famílias alemãs e francesas. Quando nasceram, cientistas investigaram as características sonoras do choro desses bebês. Descobriram que os bebês franceses choram em oxítonas, com peso maior na última sílaba. Já os alemães choram em paroxítonos. É interessante porque revela que, lá de dentro do útero, já capturavam o que ouviam das famílias e, sobretudo, das mães.
2-Os bebês já nascem com um sotaque?
Exatamente. A gente sabe que eles ouvem dentro do útero. Mas provavelmente não veem – até porque não há nada para ver. Sabemos também que sentem o tato em determinado ponto, mas não sabemos se sentem dor. Isso é fundamental por razões médicas e éticas. A questão do aborto, por exemplo, repousa no possível sofrimento do bebê.
O senhor fala sobre impactos diferentes no cérebro infantil de histórias contadas por familiares, e as que chegam pelas mídias digitais. Por que histórias contadas têm maior impacto no desenvolvimento cognitivo da criança?
Em primeiro lugar, a leitura compartilhada ocorre em situação de empatia, carinho, emoção grande. A presença da mãe, do pai, do irmão mais velho transmite um calor emocional que contribui para o processo de aprendizado e memorização. Isso é uma coisa muito conhecida na neurociência: as memórias são ajudadas pelas emoções, para o bem ou para o mal. A gente consegue se lembrar de coisas que têm significado emocional forte.
3-O senhor diz ainda no livro que “as telas sobrecarregam a memória operacional e a atenção visual em detrimento da imaginação”. Como isso ocorre?
A leitura compartilhada permite mais espaço, mais tempo para a reflexão do que o celular. O celular é desenhado para um scroll infinito, há compulsão de ir lá para baixo. No livro, é mais difícil fazer isso, não há essa compulsão. Há vários trabalhos contundentes nesse aspecto. As mídias digitais, menos associadas à emoção e com menos tempo para reflexão, são menos favoráveis à memória, ao aprendizado.
4-A hiperconectividade rouba os momentos de não fazer nada. Por que é preciso deixar a mente vagar?
Há uma situação na atividade cerebral, a atividade de modo padrão, em que as regiões do cérebro “conversam” justamente quando não estamos fazendo nada. Ao ficar tranquilo, fechar os olhos, deixar rolar seus pensamentos, sem fazer nada específico, isso é um momento de grande criatividade do cérebro. Pessoas criativas, em geral, não são agitadas na maior parte do tempo, mas as que têm momentos de isolamento, tranquilidade, reflexão. Diferentes regiões do cérebro “conversam” quando não estamos fazendo nada e isso tem valor grande na criatividade. Mais adiante, nos lembraremos da ideia que apareceu naquele momento de relaxamento. É o chamado clique criativo. É sábio silenciar ou tirar o celular de perto em alguns momentos do dia. Li há pouco um livro chamado Foco Roubado, do jornalista britânico Johann Hari, que trata da questão de termos nosso foco atencional destruído pelas tecnologias digitais. E há duas maneiras de lutar contra isso. Uma é individual, abandonando o celular em alguns períodos do dia. Mas isso não resolve o problema do ponto de vista social. A outra é a regulação das mídias sociais pela legislação dos países, o que é difícil porque envolve milhões de dólares.