É quase consenso que as próximas eleições estarão entre as mais exasperadas de nossa história republicana. As circunstâncias e o acaso nos legaram opostos em disputa que não apenas são diferentes ideologicamente, mas que nutrem entre si bastante além do que sentimentos de uma disputa acirrada. A intolerância governando as ações, especialmente a partir da ascensão de uma adormecida extrema direita brasileira, não está suficientemente contida ou circunscrita, mas tende a espraiar-se, ocasionando um clima de polarização extremada no processo como um todo, catalisando os polos e isolando o centro, que busca trazer racionalidade ao debate, num ambiente perigosamente encharcado pelas emoções. A construção desse estado de coisas, dessa temperatura política cuja coluna de mercúrio não cessa de subir, tem múltiplas razões e origens, sendo uma delas o quadro de fragmentação partidária, que coloca indivíduos acima das agremiações, induzindo ao fomento do messianismo, das falsas curas e promessas, do populismo e seu filho dileto: “o salvador da pátria”. Há bem mais do que isso, entretanto.
Um modelo, quando viciado e incorreto, tende a corromper as melhores intenções. A previsão de que teremos o ano eleitoral tumultuado em 2022 é mais do que mera futurologia. O enredo conflituoso está plasmado, feito uma moldura, nas ondas do rádio, na TV e nas mídias sociais, onde, não obstante o esforço laborioso da Justiça em combater a indústria da mentira, prosperam discursos carregados de rancor, ódio e ausência de empatia. Essa crônica de uma tragédia anunciada nos convida a um esforço duplamente desafiador. Precisamos, a fim de análise ponderada, uma espécie de desapego clínico na observação do atual fenômeno, enquanto simultaneamente devemos engendrar esforços para também agir no sentido de amainar os ânimos, apostando na pluralidade de visões. Isso, logicamente, não vai ocorrer “per se”, mas por um obstinado e engajado envolvimento no processo dialógico hoje claudicante. Com o clima político em ebulição, a busca por maior entendimento deve ser um norte. Uma compreensão das raízes que nutrem o dissenso também pode iluminar o fomento de opções que não nos condenem a não termos escolha.
Uma alternativa para não apenas entender, mas também atuar, é desenvolver maior abertura e tolerância, enquanto somos fustigados diariamente pelo sectarismo de muitos que enxergam no confronto uma estratégia política. Como bem assinala Jonathan Haidt, não podemos estudar a mente, ignorando a cultura, como costumam fazer os psicólogos, porque a mente funciona apenas depois de ter sido preenchida por uma cultura específica. Também não devemos estudar a cultura ignorando a psicologia, como muitas vezes fazem os antropólogos, uma vez que práticas e instituições sociais são, em certa medida, moldadas por conceitos e desejos enraizados profundamente na mente humana. Nessa perspectiva, um caminho para maior abertura intelectual, e que pode nos ajudar a avançar diante desse oceano de incompreensão mútua é afastar, de pronto, a exclusão peremptória do outro, sem antes, com humildade e esforço, buscar assimilar o que subjaz ao comportamento que divergimos.
Desafiar o padrão vigente, de modo a examinar o ambiente com maior racionalidade substantiva, não implica desconhecer que somos grandemente intuitivos e emocionais, mas reforçar os espaços para o debate ocorra em parâmetros civilizados e ancorados na realidade. A política, antes de tudo, é o lugar para a expressão dos grandes temas nacionais, mas também deve ser capaz de amparar o dissenso sem que sejam rompidos os canais pelos quais flui o curso dialógico. O apelo, portanto, para que haja um processo eleitoral que não descambe para uma guerra entre os oponentes está muito além de um simples desejo, mas tem a ver com a capacidade do Brasil enfrentar um dos seus maiores desafios contemporâneos, garantindo que sua democracia siga sendo fortalecida, apesar dos perfis dos atuais contendores, ou até mesmo das atuais circunstâncias.