Denúncias antigas de abuso sexual, como as que estão surgindo agora contra o médium João de Deus, costumam provocar o seguinte questionamento: por que as vítimas demoram tanto tempo para romper a barreira do silêncio e denunciar o seu algoz?
Quanto mais poderoso ou influente o criminoso, maior é o medo das mulheres violentadas em revelar o abuso, que, às vezes, leva anos para vir à tona. No caso de João de Deus, já apareceram de denúncias de 30 anos atrás. Em uma delas, a mulher de 41 anos diz que foi estuprada pelo médium quando tinha 11 anos.
Inúmeros casos, como o do médico Roger Abdelmassih ou do magnata do cinema americano Harvey Weinstein, demonstraram que esse tipo de comportamento é bem comum.
Crimes sexuais são historicamente subnotificados no mundo todo. É uma situação própria do pós-trauma, da dificuldade das vítimas em revelar o ocorrido. Segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apenas 10% dos casos de estupro no País são formalmente denunciados. Em 2016, a polícia brasileira registrou 49.497 crimes dessa natureza.
São vários os motivos que levam mulheres de todas as idades, credos, raças e condições socioeconômicas a agirem dessa forma. Às vezes, as vítimas não conseguem identificar determinados comportamentos como atitudes criminosas. Ou temem que ninguém acredite nelas.
Em geral, abusos sexuais são crimes de difícil comprovação, acontecem entre quatro paredes, sem testemunhas. Muitas vezes a palavra da vítima é a única prova da violência. E em muitas sociedades, como a brasileira, a palavra da mulher tende a ser relativizada, vista com desconfiança.
Não são infrequentes relatos de mulheres violentadas que sofreram preconceito até de quem deveria protegê-las, como autoridades policiais e judiciais. São submetidas a questionamentos a respeito do local onde estavam ou sobre que tipo de roupa usavam no momento do crime.
As vítimas sentem vergonha, receio de que sejam acusadas de incentivar ou encorajar a prática. Também têm medo de represálias, de sofrer mais violência, de serem processadas por calúnia, de perder o emprego, de serem desprezadas pela família.
Mas existem sinais de mudanças. Nos Estados Unidos, há uma onda de mulheres inspirada pelo movimento #MeToo que vem denunciando casos de assédio e abuso sexuais do passado em suas universidades. Alguns ocorreram há mais de 50 anos.
Isso tem levado muitas escolas a revisarem os limites temporais impostos às investigações. É o caso da Universidade Rutgers, que tirou sua tolerância de dois anos e passou a investigar todas as denúncias, independentemente do tempo decorrido.
No primeiro semestre deste ano, a Universidade do Estado de Michigan recebeu 22 denúncias de abusos ocorridos há mais de 20 anos. A maioria era de mulheres que foram assediadas por professores, monitores e funcionários.
Ao mesmo tempo que as revelações de um passado distante podem ajudar a vítima a fechar velhas feridas e a buscar justiça, elas também esbarram na dificuldade de investigação. Muitos suspeitos de crimes sexuais já se aposentaram, se mudaram ou morreram. As universidades também alegam desafios éticos, entre eles acomodar esses casos antigos a novos sistemas de disciplina criados a partir de ideias atualizadas sobre o que é errado ou certo.
No Brasil, há chances de que abusos sexuais antigos passem a ser investigados. Hoje eles são prescritos após 20 anos. Ou seja, depois disso, mesmo que a vítima denuncie, o autor do crime não pode mais responder por ele.
Ano passado, o plenário do Senado aprovou proposta de emenda à Constituição, de autoria do senador Jorge Viana (PT-AC), que torna o estupro um crime imprescritível. A proposta está agora sob análise da Câmara dos Deputados.
Caso o projeto vire lei, não haverá mais tempo mínimo para que as vítimas façam a denúncia à Justiça. Hoje, no caso de crianças e adolescentes, a contagem de tempo para a prescrição pode começar a partir da data em que a vítima completa 18 anos.
O argumento jurídico para tornar o estupro imprescritível é que há um natural lapso temporal entre o crime cometido e o tempo que se leva para que a vítima se recupere do trauma sofrido e tenha coragem de denunciar o agressor.
Lembrando que, na maior parte dos casos que envolvem crianças e adolescentes, o criminoso é um familiar ou alguém bem próximo a elas.
Espera-se que com a mudança haja mais chance de voz e justiça ao estimado meio milhão de estupros que o País vive e silencia todos os anos.