Sábado, 28 de dezembro de 2024
Por Leonidas Zelmanovitz | 21 de maio de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Vinte e cinco mil anos atrás, as áreas de Porto Alegre recentemente inundadas estavam debaixo d’água – do mar. Ao longo dos milênios, a erosão dos solos levada pelos rios sedimentou e formou a topografia que os portugueses encontraram quando aqui aportaram.
Em 1752, quando os casais açorianos chegaram, deram-se conta de que Viamão poderia ser uma boa localização para fins militares, mas, para produzir e comercializar, melhor seria viver próximo ao Guaíba. Ocorre que as terras entre o porto e Viamão pertenciam ao sesmeiro Jerônimo de Ornelas. Sem alternativa, os colonos se amontoaram na ponta da colina onde hoje se situa o centro da cidade, mais ou menos entre a Usina do Gasômetro e a Ponte dos Açorianos.
Passaram-se quase vinte anos antes de a sesmaria ser desapropriada, a capital transferida e o desenvolvimento urbano começar.
Eu moro em Indianápolis, nos Estados Unidos. Quando Indiana se tornou um estado, a principal atividade econômica era a caça. Quando, em 1836, esses caçadores de peles decidiram fazer uma nova capital, eles encomendaram um levantamento topográfico e contrataram o mesmo arquiteto que desenhou Washington.
Como eles eram muito pobres e a terra era praticamente de graça, o arquiteto projetou a cidade preservando todo o esgotamento natural e, em uma zona de baixios e banhados, indicou como adequadas para a ocupação urbana somente as áreas não sujeitas à inundação.
A cidade, que se desenvolveu por cerca de 140 anos dentro desse plano, hoje proporciona a seus habitantes boa qualidade de vida a um custo baixo. A diferença para Porto Alegre é marcante. A expansão da área urbana no Brasil, e em Porto Alegre em particular, depende da vontade dos burocratas, dos vereadores, do prefeito, dos promotores de Justiça e de quem mais possa tirar uma lasquinha do empreendimento. Em meio ao imenso território em que vivemos, a terra urbana é artificialmente escassa e cara. Como ensina Hernando de Soto, o custo de se produzir área urbana “formal” leva à criação de áreas urbanas “informais”.
A falha desse sistema não deve desviar nossa atenção para o fato que há cidades inteiras que foram construídas sem proteção nenhuma contra eventos cuja probabilidade é conhecida. Caso vivêssemos na Holanda, onde há pouca terra para a quantidade de gente que mora lá, seria desculpável usar recursos escassos para se criar obras de proteção contra enchentes.
Mas em Canoas, Eldorado ou São Leopoldo, por que construir cidades onde se sabe que, para morar ali, protegido de inundações, obras caras seriam necessárias? A resposta é a mesma que explica como os casais açorianos acabaram amontoados na ponta do Gasômetro: as regras pelas quais nossa sociedade é governada obedecem a uma lógica que não prioriza os interesses dos cidadãos.
A maioria das pessoas afetadas por essas inundações é gente trabalhadora, esclarecida, porém com recursos limitados, tentando fazer o melhor para si e para suas famílias. As circunstâncias são tais que é impossível para eles comprar uma habitação em uma área ao mesmo tempo alta (ou protegida) e perto da infraestrutura urbana disponível.
Muitos vão tirar dessa tragédia uma lição de que mais restrições ao desenvolvimento urbano devem ser impostas com o objetivo de prevenir sua repetição. Outros vão propor mais gastos públicos para executar obras de proteção contra semelhantes eventos. Essas lições, porém, são erradas.
Se é para facilitar a reconstrução das comunidades afetadas pelas enchentes, o que se deveria fazer seria simplificar, radicalmente, a ocupação urbana de áreas hoje rurais propícias para usos urbanos, como boa parte da região metropolitana de Porto Alegre ainda é.
Sou suficientemente velho e cínico para não colocar a culpa pela recente tragédia no governo. Mas, sim, as mudanças, se as queremos pacíficas, devem vir da representação política e, portanto, dependem da eleição dos líderes certos, daqueles que compreendem a gravidade do momento e a oportunidade para construir um estado melhor do que aquele que existia antes.
Leonidas Zelmanovitz, advogado e economista, associado honorário do Instituto de Estudos Empresariais (IEE)
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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