Há vários modos de falar de um fenômeno. Por vezes, só a literatura pode dar a dimensão da tragédia. Quando você é processado injustamente, quando você perde uma ação judicial (falo, aqui, do âmbito jurídico e não das frustrações do cotidiano), com certeza você se identifica com o que vou contar na sequência.
José Saramago conta uma história ocorrida há 400 anos. Os moradores de um lugar estavam entregues aos seus afazeres e, súbito, ouviram o sino da igreja tocar.
Naqueles piedosos tempos, os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento.
Foram todos à igreja e perguntaram a quem deveriam prantear. “O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino”, foi a resposta do camponês. “Mas então não morreu ninguém?”, tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu:
“Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.” E contou sua triste história. Perdera tudo. Fora injustiçado pela justiça. Suas terras lhe foram tomadas. Por decisão judicial. A lei lhe dava o direito. Mas o juiz entendeu que onde estava escrito x, devia ser lido y.
No Brasil, o direito costuma ser deixado de lado e substituído por opiniões morais. Ou opiniões políticas, o que dá no mesmo, porque uma opinião política é sempre uma opinião moral. Quando me formei, o lema do convite de formatura era de um conhecido processualista, Eduardo Couture e dizia mais ou menos assim: Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça. Nós adoramos, à época.
Ledo engano. Péssimo adágio. Em uma democracia, temos de usar outro adágio, o de Honório Lemes, o Leão do Caverá: queremos leis que governem os homens e não homens que governem as leis. Eis o ponto. Couture diz, mutatis, mutandis, que os homens justos podem saber mais que o Direito. Honório Lemes, desconfiado dos homens – no que estava absolutamente correto – preferia apostar nas leis e no Direito.
O justo é pouco seguro; depende de voluntarismos. O Direito deve depender de uma estrutura feita na esfera pública. O que é justo deve depender menos de opiniões pessoais de juízes do que do que consta nas leis e na Constituição. Porque a opinião é pessoal; e a Constituição é uma “opinião” de todos.
E, uma pergunta: justo para quem? Eis o que eu perguntava para o vereador Walter Nagelstein, quando ele esgrimia, lépido, o uruguaio Eduardo Couture em debate no Pampa Debates, comandado brilhantemente por Paulo Sérgio Pinto.
Temos desacordos sobre a maioria das coisas. Politica, então, as pessoas têm várias opiniões. Sobre costumes etc, idem. Ora, se na hora H existir conflito entre o Direito (feito na esfera pública) e o que cada um pensa (esfera privada), com devemos ficar?
Transportem isso para um julgamento. Entre o que o juiz pensa e o que diz o Direito, o que você prefere? Ah, você vai dizer: prefiro o que me beneficia. Ah, bom. Mas não é disso que se trata. Porque, se é assim, amanhã você poderá estar do lado errado da opinião do juiz. É como gol de mão: a banca paga, a banca recebe.
Por vezes, a opinião do juiz pode ser a mais justa. Pode. Mas na maioria das vezes, podem escrever: é melhor seguir as leis. Afinal, um relógio parado acerta a hora duas vezes por dia.
Ah: o caso contado por Saramago é do medievo. Nem havia Direito como o conhecemos hoje. Talvez até, naquele momento, homens justos poderiam saber mais do que as leis, porque, em sua maioria, estas eram injustas. Mas, hoje, o que deve valer é a Constituição.