Mais do que um hobby, a prática do tiro no Brasil atual é um estilo de vida. Dados inéditos mostram que o universo armamentista teve um crescimento sem precedentes no último ano. Até novembro de 2021, o Exército concedeu 1.162 novos registros por dia a Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs). É mais que o dobro dos 567 contabilizados diariamente no ano anterior. Para esse público pujante de apreciadores de armas, o mercado tem oferecido cada vez mais serviços como clubes de tiro de luxo com funcionamento 24 horas, treinamento exclusivo para mulheres e até hotel rural com espaços para a prática de “tiroterapia” em família.
Nos espaços de convivência, é possível degustar, a pedidos, charutos ou bebidas temáticas como a vodka russa Kalashnikov, que leva o nome do inventor do AK-47 e cuja garrafa imita uma munição de fuzil. Alguns contam com cozinhas sob supervisão de chefs renomados, além de piscina aquecida e quadra de beach tennis.
O empreendedor Gustavo Pazzini, de 31 anos, entrou na onda armamentista em 2018, quando inaugurou seu primeiro clube de tiro no Campo Belo, em São Paulo. Há dois meses, abriu outra unidade em Moema, voltada para o público A+, com funcionamento em tempo integral. Segundo ele, é o único clube do Brasil que “nunca fecha”. A anuidade para frequentar o estabelecimento, que oferece desde regularização da documentação da arma até loja com vários modelos de armamento e munições, chega a R$ 8 mil. Em breve, Gustavo lançará um terceiro estande da rede, no interior do estado.
“Nosso público é predominantemente masculino, de 25 a 45 anos, que tem apreço por arma de fogo e que viu reacender a vontade de adquirir uma no governo atual”, diz Pazzini, proprietário do grupo G16 Universidade do Tiro. “Eu era empreendedor em outro ramo, mudei e deu muito certo. Temos quase cem colaboradores, e minha intenção é chegar a cem unidades ainda neste ano.”
Com a política de flexibilização do acesso a armas, o número de brasileiros com suas carteirinhas ativas de CAC chegou a quase meio milhão no último ano, quase o triplo de 2019. As informações foram obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI), numa parceria do jornal O Globo com os institutos Igarapé e Sou da Paz.
Escalada armamentista
Esta semana, com a volta dos trabalhos no Congresso, o Senado deverá retomar a discussão de uma das propostas de alteração na lei com mais potencial de impactar esse público. O PL 3.723/2019, do Executivo, tem a pretensão de alterar o Estatuto do Desarmamento de 2003, que limitou o acesso a armas e munições no Brasil. Desde então, o porte foi proibido para civis, com exceções para poucas categorias profissionais, e a posse – o direito de ter a arma em casa ou no trabalho – passou a ter uma série de restrições. O presidente Jair Bolsonaro tem apoiado o afrouxamento das regras: em sua gestão foram 14 decretos presidenciais, 14 portarias de órgãos de governo, dois projetos de lei e duas resoluções com esse intuito. Porém, boa parte foi contestada no Superior Tribunal Federal (STF). Sob o argumento da busca de segurança jurídica, os armamentistas apostam agora no PL para consolidar, no texto da lei, algumas regras já alteradas.
Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé, ressalta os dois pontos que considera mais polêmicos do PL: a extinção da marcação de munições, inclusive para as forças de segurança, “fundamental para esclarecer crimes com violência armada e para investigar melhor as dinâmicas de desvios”; e a autorização do transporte de uma arma de porte municiada e pronta para uso pelos CACs, a “legalização do porte velado”.
“Na prática, o texto libera o porte para essa categoria. Seria praticamente meio milhão de pessoas andando armadas no país. A preocupação do Estado não deve ser atender às demandas de um grupo que quer mais acesso para suas atividades recreativas. Mas evitar que essas armas e munições sejam desviadas e caiam na criminalidade”, pontua Michele. As informações são do jornal O Globo.