Entre a névoa das guerras do presidente dos EUA, Donald Trump, contra o comércio internacional e a administração federal, a guerra contra a imprensa passa quase despercebida. Mas ela é essencial para viabilizar as outras, e todas fazem parte de uma ofensiva comum contra o Estado Democrático de Direito. Populistas autoritários detestam a imprensa independente, e não é por acaso que em todas as mensurações de vigor democrático a liberdade de imprensa é sempre um indicador crucial. Ela é um pilar das democracias, assim como uma mídia subserviente é uma marca registrada das autocracias.
Uma das causas pelas quais a guerra contra o “Quarto Poder” desperta menos clamores é a vulnerabilidade da imprensa tradicional. A descrença da população em relação ao compromisso do jornalismo profissional com a isenção e a objetividade tem crescido. É fácil para os demagogos acusarem a imprensa de arrogante e partidarizada quando tantos veículos são arrogantes e partidarizados.
Outra causa é que esta guerra não é travada com uma única arma, como as tarifas de importação, ou com um único batalhão, como o Departamento de Eficiência Governamental (Doge), mas em múltiplas frentes, com tropas e arsenais variados, como ações legais contra veículos de imprensa; acusações hiperbólicas e infundadas; uso do poder estatal para controlar o acesso à informação; favorecimento de veículos alinhados; intimidação a jornalistas; e aliciamento dos donos dos veículos de comunicação.
Desde que entrou nos holofotes como empresário, Trump moveu inúmeras ações contra veículos de imprensa, em geral por difamação. Mas a jurisprudência em torno da Primeira Emenda ergueu barreiras que protegem coberturas contundentes de figuras públicas, e Trump perdeu quase todas essas ações. A nova estratégia é apelar a leis de proteção ao consumidor.
Trump acusa a rede CBS de editar fraudulentamente uma entrevista de outubro com a sua então adversária eleitoral, Kamala Harris – “o maior escândalo jornalístico da história!!!”, disse, em suas redes sociais. Embasando um pedido de indenização de estratosféricos US$ 10 bilhões, os advogados apresentaram duas respostas de Harris à mesma pergunta, veiculadas em programas diferentes. Jornalistas editam regularmente entrevistas em razão da brevidade e da clareza. A íntegra da gravação evidencia que os trechos refletem a substância da resposta e não foram descontextualizados.
Ainda assim, a Comissão Federal de Comunicações (FCC) desarquivou denúncias contra a CBS e as redes NBC e ABC relacionadas às acusações de Trump de cobertura ilegal das eleições que podem levar à cassação de suas licenças para transmitir em rede aberta. O novo presidente da FCC, Brendan Carr, um militante trumpista, não perdeu tempo em subsidiar a vingança de Trump, ameaçando rever o processo de fusão entre a Paramount, dona da CBS, e um estúdio de cinema, além de abrir investigações contra as redes públicas NPR e PBS, frequentemente criticadas por Trump.
A mensagem para os veículos de imprensa é a de que desagradar a Trump é perigoso. O outro lado da moeda é que aqueles que se alinharem a ele serão ungidos com benesses. O Departamento de Defesa, por exemplo, anunciou que veículos tradicionais, como o New York Times, NBC e NPR perderão acesso aos escritórios de imprensa no Pentágono em favor de mídias pró-Trump, como One America News, New York Post e Breitbart News.
“Quem controla a mídia de um país controla a mentalidade deste país e através dela o próprio país”, disse, com brutal honestidade, Balázs Orbán, o estrategista político do premiê autocrático húngaro Viktor Orbán. Em um país com as garantias constitucionais e a cultura do jornalismo independente dos EUA, tal controle jamais aconteceria do dia para a noite.
Mas a pressão máxima de Trump para enfraquecer a autonomia editorial dos veículos, a discricionariedade de jornalistas de receber e transmitir informações e o acesso público a ideias e opiniões tem claramente este objetivo. Sob a máscara de “guerreiro da liberdade de expressão”, é indisfarçável a face de um guerreiro contra a liberdade de imprensa. (Estadão Conteúdo)