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Primeiro festival de cinema da Arábia Saudita evita filmes com temas “indecentes”

Red Sea, o primeiro festival de cinema da Arábia Saudita, que teve tapete vermelho no centro histórico de Jidá. (Foto: Andreas Daniel/Divulgação)

Painéis com o slogan “Waves of change” (Ondas de mudança) tomaram nas últimas semanas a cidade de Jidá, a segunda maior da Arábia Saudita – atrás da capital Riade. Foi assim que o Red Sea International Film Festival (RSIFF), o primeiro festival de cinema do país, se posicionou, alinhado com a promessa do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman de modernizar o reino ultraconservador, aproximando-o do Ocidente.

Para um país que reabriu seus cinemas em abril de 2018, após 35 anos de proibição, quando imperava uma rígida interpretação das leis islâmicas, o festival local conseguiu algumas proezas. Como projetar filmes com subtextos envolvendo puberdade, aborto e lesbianismo, temas que ainda são tabus na sociedade e, consequentemente, nos cinemas. Em solo saudita, os títulos continuam submetidos à censura, sobretudo no que diz respeito a conteúdo de cunho sexual, religioso e político.

O musical “Amor, Sublime Amor”, por exemplo, foi recentemente banido da Arábia Saudita, após a Disney não aceitar cortar da obra de Steven Spielberg as cenas com o personagem transgênero Anybodys (Iris Menas). “Eternos”, do mesmo estúdio, também teve a estreia proibida, em novembro, em função da cena de beijo entre o super-herói gay Phastos (Brian Tyree Henry) e o marido Ben (Haaz Sleiman).

Encerrado no dia 15, o festival à beira do Mar Vermelho conseguiu certa “licença” para incluir temas mais delicados na programação por se tratar de um evento internacional, com cerca de mil convidados estrangeiros. Mas desde que nenhum título selecionado trouxesse cenas gráficas e ofensivas à religião e aos costumes locais. E os filmes mais controversos ainda passaram fora do horário nobre, com exibições após as 23h – como uma espécie de “sessão maldita”.

Foi o caso de “Fay’s Palette”, do diretor saudita Anas Ba-Tahaf, que desafia as regras ao apresentar uma protagonista lésbica. Oprimida pelo irmão, a jovem passa o tempo pintando, a única forma que encontra de se expressar. Mas sua predileção por mulheres é velada, abordada apenas nas suas recordações de escola, quando ela nutria paixão platônica por outra garota. Não há cena de beijo ou sexo.

“Fomos sensíveis às questões culturais na seleção dos filmes do Red Sea. Todos os escolhidos, no entanto, foram apresentados na íntegra”, afirmou Shivani Pandya Malhotra, diretora executiva do festival. “O importante é que existe um interesse real em apoiar a indústria cinematográfica no país, e estamos aqui como agente facilitador”, completou Shivani, ex-diretora do Festival de Dubai, nos Emirados Árabes.

O RSIFF é resultado do Visão 2030, o ambicioso plano do príncipe conhecido pelas iniciais MBS de remodelar a economia do rico país, tradicionalmente dependente de petróleo. A diversificação inclui desenvolver os setores de entretenimento e turismo, além de suavizar no exterior a imagem da Arábia Saudita, um dos países mais fechados do mundo, o que tem forçado certo grau de abertura na sociedade local.

Em 2018, caiu a proibição que impedia as mulheres sauditas de conduzirem automóveis. E no mesmo ano elas já começaram a frequentar estádios de futebol, ainda que autorizadas a ver os jogos somente da ala reservada às famílias. A segregação dos sexos em espaços públicos, como casas de shows e cinemas, também não é mais aplicada, permitindo o convívio misto.

“O Red Sea é mais um avanço, um sinal de que as coisas estão mudando. Na minha adolescência, ouvia dos professores que eu iria para o inferno se visse qualquer filme”, contou Haifaa al-Mansour, de 47 anos, a primeira mulher do país a virar diretora. Com a ajuda dos pais, que eram mais liberais, ela estudou cinema na Austrália e fez carreira internacional com filmes como “O Sonho de Wadjda” (2012) e “A Candidata Perfeita” (2019).

A escolha de Jidá para acolher o primeiro festival de cinema da Arábia Saudita foi estratégica. E não só por causa de um código de vestimenta e de comportamento mais flexível. Isso certamente facilitou tanto a convivência com convidados estrangeiros que não cobrem o corpo como os locais (com a túnica para os homens e o hijabe para as mulheres) quanto a organização de festas. Todas as noites, DJs animavam as pistas de dança com música eletrônica e sucessos ocidentais do rock e do pop – muitas vezes com letras que poderiam ser consideradas “indecentes” pela religião local.

Jidá é também uma cidade com potencial turístico, graças ao seu centro histórico, conhecido como Al-Balad. Os cinemas do Red Sea foram construídos justamente nessa área, listada como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, em 2014. No século VII, a cidade se firmou como importante porto comercial e porta de entrada para peregrinos muçulmanos a caminho da cidade sagrada de Meca.

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