Nada escapa à metralhadora vocal de Deadpool, o anti-heroí da Marvel que volta às telas para disparar mais piadas e provocações, atacando até a sua nova casa, a Disney. Longe de uma versão “Disneyficada”, o que os fãs do zombeteiro dos quadrinhos mais temiam na superprodução “Deadpool & Wolverine”, o vigilante mascarado faz aqui referência a sexo anal, brinca que cocaína foi a única coisa que o proibiram de usar em cena e ridiculariza o conceito de multiverso, explorado à exaustão nos filmes de super-herói.
No já conhecido tom de gozação, Deadpool diz, logo de cara, que nem ele esperava ganhar um filme na Disney, um estúdio tradicionalmente mais pudico, por se esmerar na produção de conteúdo para toda a família.
“Como Deadpool tem sempre a audácia de dialogar com a cultura e com o que acontece no mundo, para que seu novo filme fosse autêntico foi imprescindível comentar o fato de a Disney ter comprado a casa do personagem, que era a Fox”, diz Shawn Levy, diretor de “Deadpool & Wolverine”, lembrando que o estúdio adquiriu em 2019 a Fox, até então a detentora dos direitos dos personagens mutantes da Marvel.
A liberdade criativa para explorar o humor ácido e a boca suja de Deadpool surpreendeu Levy, parceiro do protagonista Ryan Reynolds na criação do roteiro. “Pensei que encararia uma negociação antes de cada piada ser aprovada, mas não. Kevin Feige [presidente da Marvel Studios], Bob Iger [CEO da Disney] e todo o time na Disney e na Marvel entendem quem Deadpool é. E todos o amam por isso”, diz o cineasta ao Valor no hotel Fasano, em sua passagem pelo Rio para promover a superprodução que acaba de chegar às salas.
“Quando assistimos a Deadpool nas telas, queremos vê-lo subvertendo tudo, inclusive as expectativas, e zombando de celebridades, políticos e tendências.”
Levy reconhece que o timing não poderia ser melhor para Deadpool quebrar algumas regras, já que o filão sofre do que a indústria de entretenimento chama de “cansaço dos super-heróis”. Depois que a quantidade passou a importar mais que a qualidade, algo que o próprio Bob Iger admitiu, o que se viu recentemente foi a repetição de estruturas narrativas e a busca pelo cinema-espetáculo, tirando o foco dos personagens. Isso explica a queda nas bilheterias, tanto dos filmes dos heróis da Marvel, lançados pela Disney, quanto dos da DC Comics, distribuídos pela Warner, como “The Flash” e “Shazam! Fúria dos Deuses”, que também fracassaram no ano passado.
Deadpool tira o sarro do abuso dos mundos alternativos nas tramas de heróis salvando o planeta, o que não impede o novo filme de usar a mesma teoria do multiverso, por mais contraditória que a medida possa parecer. Até porque esse seria o único jeito de trazer Wolverine (Hugh Jackman) de volta. Não o original, da mesma linha de tempo de Deadpool, que morreu no filme “Logan” (2017), mas uma versão do herói com garras retráteis e poder de autocura.
Após a AVT, a Autoridade de Variância Temporal, contar a Deadpool que vai destruir o seu mundo por se tratar de uma linha do tempo perigosa, desde a morte de Wolverine o vigilante vermelho tenta encontrar outros dele, em realidades paralelas, escolhendo, sem saber, uma versão que teria decepcionado todos.
“Nós recorremos ao multiverso e, ao mesmo tempo, reconhecemos o seu uso demasiado. Essa foi uma das piadas que, ao mostrar a cena a Kevin Feige, eu não olhei para a tela e sim para ele, para ver a sua reação. Foi um alívio quando Kevin começou a rir. Daí eu percebi qual seria a regra: se é engraçado, está liberado”, conta Levy. Disney e Marvel tiveram que concordar com uma classificação mais severa (para maiores de 18 anos nos EUA). “Até então nunca houve um filme da Marvel que fosse R-rated [sigla americana para a classificação adulta]”, diz o diretor, orgulhoso.
Talvez os números impressionantes dos dois primeiros filmes de Deadpool, na Fox, tenham ajudado na decisão de abrir a exceção. Até hoje a linguagem profana e a alta dose de violência nas produções do herói de ética duvidosa e poder regenerativo só impulsionaram as bilheterias. Foram US$ 782 milhões arrecadados com “Deadpool”, em 2016, e mais US$ 785 milhões com “Deadpool 2”, lançado em 2018.
Mas nem por isso Levy e Reynolds carregaram nas tintas, em termos de sexo, drogas e banho de sangue só porque a classificação mais rigorosa permitia praticamente tudo. “Nós tivemos disciplina. Ao considerarmos uma piada, nos perguntávamos se isso faria sentido na trama. Se a resposta fosse não, tínhamos que resistir à tentação. Se atirássemos para todos os lados, a plateia não se concentraria e não investiria emocionalmente nos personagens que conseguimos reunir pela primeira vez.”