A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados foi rebaixada a instrumento de vingança do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Desde o fim de 2022, o STF tem agido com denodo para acabar com a indecência do orçamento secreto e, assim, cumprir o seu dever de defender a Constituição. Mais recentemente, em agosto passado, a Corte impôs duros reveses aos interesses antirrepublicanos do sr. Lira e seus associados nessa captura do Orçamento da União à margem de qualquer escrutínio público. A revanche veio a galope.
Logo após o ministro Flávio Dino suspender o pagamento de emendas parlamentares até que o Palácio do Planalto e o Congresso estabeleçam mecanismos de transparência para controle da disposição desses recursos públicos, Lira desengavetou um conjunto de propostas legislativas que, em suma, visam a submeter o STF ao jugo do Congresso. Nesse pacote, há duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) e dois projetos de lei apresentados há algum tempo por parlamentares bolsonaristas sob o falso pretexto de “reequilibrar” os Poderes. Essas medidas, porém, não se prestam a reequilibrar coisa alguma, mas sim a dar poderes absolutos ao Congresso – o que não se coaduna com a mera ideia de República.
No dia 8 de outubro, mal foram encerradas as eleições na maior parte do País, os bolsonaristas com assento na CCJ voltaram ao trabalho com “sangue nos olhos”, como se diz, e aprovaram as PECs e os projetos de lei por meio dos quais se pretende saciar a sede de vingança dos que se sentiram prejudicados com o fim da esbórnia na indicação de emendas ao Orçamento da União ou invadidos em suas prerrogativas pelo que chamam de “ativismo” do STF.
No meio desse chamado pacotão, pode-se argumentar, até há uma proposta razoável, qual seja, a que impede que um ministro da Corte, sozinho, possa sustar a validade de lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República. De fato, a decisão liminar de um só ministro não deveria se sobrepor ao rito legislativo democrático, que se presume hígido. Mas essa proposta – que de resto é ociosa, haja vista que o próprio STF alterou seu Regimento Interno para estabelecer prazo para que decisões monocráticas sejam submetidas ao Plenário ou às Turmas – mal disfarça o vezo revanchista de Lira e seus títeres na CCJ.
A mais absurda entre as propostas ora aprovadas pela CCJ, pois viola cláusula pétrea da Constituição e, ademais, é absolutamente antidemocrática, é uma PEC que dá ao Congresso o poder de cassar decisões do Supremo por dois terços dos votos nas duas Casas Legislativas, transformando o STF em instituição decorativa. Por mais enviesado que seja o controle da pauta da CCJ por sua presidente, Caroline de Toni (PL-SC), uma devotada bolsonarista, custa crer que a comissão, cuja missão é zelar pela constitucionalidade das matérias que haverão de tramitar na Câmara, tenha chancelado uma PEC eivada de inconstitucionalidade do início ao fim. A rigor, uma matéria desse jaez nem sequer deveria ser objeto de discussão, pois, na prática, significa o fim do STF como Corte Constitucional, nada menos.
Toda essa movimentação da Câmara já seria gravíssima caso a vendeta de Lira fosse motivada por uma decisão equivocada do STF – e a Corte, é forçoso dizer, não raro tem tomado decisões que extrapolam sua competência, sem falar no comportamento de alguns ministros que afrontam a moralidade pública e a própria Lei Orgânica da Magistratura. Mas não é o caso. O presidente de uma das Casas Legislativas se insurgiu contra o STF por uma decisão absolutamente correta do ministro Flávio Dino, depois referendada por seus pares, que, ao fim e ao cabo, declarou que o orçamento secreto não é compatível com a Constituição. Se isso não atende aos interesses de Lira, ele que lide com suas frustrações, pois os interesses do País foram resguardados.
É improvável que as medidas prosperem, o que não significa que sua mera tramitação não seja perigosa. No fundo, elas revelam que não poucos parlamentares agem sob o signo da vingança, no cenário mais benevolente, ou do golpismo, no pior. (Opinião/O Estado de S. Paulo)