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Proposta de emenda constitucional que proíbe o aborto em qualquer etapa da gestação, mesmo nos casos autorizados por lei, é vista por especialistas com um ataque aos direitos reprodutivos

Manifestantes foram às ruas neste ano contra PL que equipara aborto a homicídio. (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

A proposta de emenda constitucional (PEC) que proíbe o aborto em qualquer etapa da gestação, mesmo nos casos autorizados por lei, é vista por especialistas com um retrocesso e um ataque aos direitos reprodutivos e ao Estado laico. Aprovado na última semana pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, o texto pretende alterar o artigo 5 da Constituição Federal para incluir a “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.

Na prática, a mudança proibirá o aborto nos casos previstos em lei: quando a gestação é decorrente de estupro; anencefalia, isto é, malformação do cérebro; e quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher. Além disso, pode impedir tratamentos de fertilização in vitro ou até mesmo pesquisas com células tronco para a “preservação da vida do embrião” – conforme apontam notas públicas de entidades como Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e Rede Médica pelo Direito de Decidir.

“A forma de compreender a vida desde a concepção tem uma raiz religiosa. Temos que entender que o Brasil é um estado laico. Portanto, os nossos parâmetros para construir política pública têm que ser com base nos direitos humanos”, afirma Carla Angelini, representante da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. “Então, essa PEC não é só um ataque muito grave aos direitos reprodutivos das mulheres e das pessoas que gestam, mas também um ataque à laicidade do Estado”, completa, criticando também a instrumentalização da fé pela política.

Para o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, a PEC é um “projeto ignóbil que envergonha o Congresso Nacional”. Ele acredita que a proposta vai ter “impacto brutal” na mortalidade materna.

“O projeto vai aumentar o risco para mulheres que, numa situação de desespero, vão continuar procurando o abortamento em condições inseguras. Principalmente as de mais baixa renda, negras, moradoras das periferias, de menor nível educacional. Vai ter um impacto profundamente negativo em termos de saúde pública”, afirma.

Temporão lembra ainda que adolescentes e crianças vítimas de abusos poderão ser as mais prejudicadas caso a PEC venha a ser aprovada pelo Congresso: “Você vai submeter crianças a uma gravidez indesejada que vão dar à luz outras crianças que serão criadas em que condições?”

Segundo Helena Paro, médica ginecologista da Rede Médica pelo Direito de Decidir, crianças têm mais risco de morrer durante a gravidez do que gestantes entre 20 e 29 anos de idade.

“Já temos mulheres e crianças que morrem por não terem acesso ao aborto legal nos casos de risco à vida. A criminalização do aborto no Brasil é responsável por meio milhão de abortos clandestinos por ano. Em 2020, no SUS, foram 200 mil internações por abortos incompletos, provavelmente a maior parte deles clandestinos. Uma proibição total do aborto significa deixar essas pessoas ainda mais vulneráveis”, afirma Paro.

A médica avalia que, ao considerar o óvulo fecundado digno de direitos, se proíbe todas as técnicas de reprodução assistida, incluindo a fertilização in vitro. “Esse texto é totalmente contrário às evidências científicas, que não determinam o início da vida humana na concepção. O único marco que pode definir o início de uma vida humana com direitos é o nascimento com vida”, conclui.

A PEC, apresentada em 2012, é de autoria do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que foi cassado em 2016. O texto ficou parado na Casa por sete anos até ser designado à deputada bolsonarista Chris Tonietto (PL-RJ), escolhida como relatora do projeto.

A PEC deve ser encaminhada agora para uma comissão especial para elaboração de um parecer antes de ir ao plenário da Casa. Está agora a cargo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a criação ou não desse colegiado; se optar por não instituí-lo, o deputado estará paralisando a proposta.

Esta é a segunda investida da bancada evangélica e bolsonarista para restringir o aborto legal. No semestre passado, a Câmara aprovou regime de urgência para o projeto de lei que equiparava o procedimento após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, mesmo nos casos previstos em lei.

Para a antropóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília Debora Diniz, também não há coincidência para o momento político em que a proposta ganha força no Congresso. A especialista vê a PEC como uma pauta fanática usada por bolsonaristas para desviar a atenção das investigações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por suposta tentativa de golpe.

“Mulheres e meninas não só são instrumentalizadas pela política, mas também colocadas como uma moeda de negociação em questões fundamentais da própria vida. Essas pautas são usadas em momentos da política em que se precisa desmontar algo que ameaça os interesses e agenda de um conjunto de políticos”, afirma Diniz.

A antropóloga aponta ainda a proposta, ao proibir o aborto em casos de estupro, como uma forma de proteger agressões e criminosos: “A PEC do Aborto é primeiro a proteção do estuprador. Segundo, é obrigar uma menina de 10 ou 11 anos, que engravida de uma violência, a seguir com a gestação.”

Na avaliação de Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, a PEC é um retrocesso para antes das permissões legais para o aborto passarem a ser previstas na lei: “Isso é muito grave. Não é um ponto de vista. Estamos falando de um retrocesso para antes de 1940.” Segundo a professora de direito constitucional, a discussão do início à vida foi feita na elaboração da Constituição de 1988, mas decidiu-se propositalmente pela não adição do termo “desde a concepção” para não inviabilizar as hipóteses de aborto legal que já eram permitidas naquele momento. As informações são do jornal Valor Econômico.

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