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Psicanalistas alertam para incapacidade de perder: Das eleições para presidente à premiação de Anitta, brasileiros não conseguem aceitar a derrota

Sociedade que valoriza desde muito cedo o ideal do vencedor em tempo integral. (Foto: Reprodução)

Aspecto inescapável da vida, perde-se desde o nascimento. Mas em consultórios país afora, psicanalistas tem apontado a dificuldade cada vez maior de se saber perder, em uma sociedade que valoriza desde muito cedo o ideal do vencedor em tempo integral, como característica especialmente alarmante em tempos de disseminação do discurso de ódio.

“Estamos detectando algo dramático. Da escala decisória da política às salas de aula e condomínios, cultiva-se a imagem de um vencedor que se recusa a apertar a mão de quem o derrotou em uma competição, foi escolhido para um cargo que se almejava ou tirou nota maior que a do seu filho”, alerta o psicanalista Christian Dunker. “Abraça-se o cancelamento, aumenta-se a judicialização de concursos públicos, usa-se cada vez mais instrumentos importantes como o compliance nas empresas não como recurso extremo, mas para não se lidar com o contraditório. A infantilização da sociedade brasileira a passos largos precisa ser tratada. E é pra já.”

O professor titular em psicanálise e psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP foi convidado pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, para participar do grupo de trabalho encarregado de elaborar estratégias de combate aos discursos de ódio e ao extremismo no país. A primeira reunião aconteceu esta semana e os trabalhos devem ser concluídos em seis meses. Dunker traça um paralelo direto entre o que especialistas apontam como a dificuldade de se celebrar as vitórias do outro e reações extremadas, em alguns casos até violentas, frente ao que é percebido como derrota, pessoal ou coletiva.

“Isso é detectado em casos de consequências gravíssimas, como os acampamentos de pessoas que se recusavam a aceitar a derrota eleitoral do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a invasão e destruição dos espaços públicos que representam as três instâncias dos Poderes e o enfrentamento e até assassinato de pessoas que defendem candidatos diferentes do seu”, afirma.  “Mas também em ocorrências de dimensão mais episódica, como no caso dos fãs da Anitta. Esse processo não é, claro, exclusivamente brasileiro, mas há um agravante quando ele é detectado em sociedades historicamente desiguais e violentas como a nossa.”

No início de fevereiro, após Samara Joy ter sido escolhida artista revelação do ano, uma das quatro categorias mais importantes do Grammy, fãs inconformados de Anitta, que havia sido uma das indicadas, por si só algo considerado um feito, invadiram as redes sociais da cantora de jazz americana de 23 anos. Entre as reações desmedidas, e quase sempre anônimas, frases como “O Brasil te odeia”, acusações de roubo na escolha (feita pelos integrantes da organização do mercado da música americana) e emojis de vômito. Com trajetória profissional inegavelmente vitoriosa, Anitta repudiou os ataques e ponderou que seus fãs de verdade jamais fariam isso com uma colega: “se não gosto que faça comigo, não é pra fazer com os outros”.

A psicanalista lacaniana Ana Luiza Colnago, de Niterói, vê na reação dos fãs de Anitta uma ilustração do que tem percebido em seu consultório e no trabalho em escolas: reações exageradas para perdas sem consequências maiores além do reconhecimento momentâneo ou de um prestígio que pode se reverter em mais ganho material.

“O luto de quem perdeu pessoas na tragédia do Litoral Norte de São Paulo, por exemplo, impõe, naturalmente, uma dor devastadora. Mas no caso da Anitta, a perda é não só possível, como matematicamente esperada, já que há mais indicados do que escolhidos. Mesmo no caso das eleições, democracia pressupõe alternância de poder”, diz. “Acusar, sem provas, fraude na disputa, muitas vezes equivale à birra das crianças quando questionam a regra do jogo após perdê-lo. É impossível viver em sociedade sem aprender a abrir mão, ainda que parcialmente, do que nos satisfaz.”

Fontes de sofrimento

A psicanalista Flavia Chiapetta, da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro, lembra que em um de seus textos centrais, “O mal- estar na civilização”, de 1929, Freud destacava que entre as principais fontes de sofrimento do indivíduo está justamente o convívio com o outro. E que a contemporaneidade, incluindo o experimento singular das redes sociais e do mergulho em universos eminentemente virtuais, como o dos videogames, acelerou o culto do narcisismo exagerado, das recompensas infinitas, da intolerância e da alteridade, ou seja, da permanente oposição ao outro.

“Se ele ganha, eu perco. Como não é permitido vivenciar a perda como uma oportunidade de aprender com o sucesso do outro, ou seja, de amadurecer com o que não se conseguiu obter naquele momento, o ódio é a resposta imediata para apagá-lo. Mas ter de ganhar sempre também traz uma dor, o que na psicanálise chamamos de uma exigência superegoica. E ganhar mais, consumir mais, não significa ser mais feliz. Precisamos focar menos no gozo imediato, em seu aspecto compulsivo, no excesso que busca encobrir a perda, e mais no próprio desejo. E, também assumir as perdas, inevitáveis, para que elas não nos paralisem”, afirma.

Dunker enfatiza duas palavras ao defender iniciativas como a do grupo de trabalho em Brasília, para tratar do tema – coragem e humildade: “Tenho escutado muito no divã: pago o quanto for, vou pra prisão, processo, mas não peço desculpa. Não metabolizar a perda como função transformadora e ficar no ataque também afetou nossa capacidade de saber ganhar. Precisamos nos tratar”.

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