Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 27 de fevereiro de 2023
No primeiro aniversário da invasão russa da Ucrânia, o repórter da BBC russa Ilya Barabanov reflete sobre um conflito que mudou a vida de milhões de pessoas, incluindo a dele.
Leia seu relato em primeira pessoa:
“Tivemos um começo de ano difícil em 2022, mas no meu caso isso não estava relacionado a rumores de guerra iminente.
Dois mercenários do Grupo Wagner, de Yevgeny Prigozhin, me processaram por difamação. Eu e minha esposa discutimos se teríamos de deixar a Rússia. Não sabíamos o que o futuro nos reservava.
O caso dos mercenários surgiu como resultado de uma reportagem investigativa que eu e meu colega da BBC árabe, Nader Ibrahim, fizemos juntos — revelando a presença de mercenários russos na Líbia entre 2019-2020.
Mostramos provas de que eles não apenas estiveram lá, lutando contra o governo amparado pela ONU e apoiando o general Khalifa Haftar, mas também cometeram crimes de guerra contra civis.
Após a veiculação da reportagem na TV e a publicação de uma reportagem descrevendo essas descobertas, os dois mercenários que identificamos entraram com processos contra mim e a BBC.
Em janeiro de 2022, o caso estava em andamento, e me preocupava a possibilidade de que ele se arrastasse. Fiquei até angustiado porque, mesmo com a ajuda de advogados qualificados, não consegui proteger minha reputação ou minha liberdade.
Seis meses depois, um dos requerentes — que alegou nunca ter feito parte do Grupo Wagner — foi morto lutando na Ucrânia como mercenário de Wagner. O outro perdeu o processo contra nós.
Ainda assim, acabei deixando a Rússia, mas por motivos bem diferentes.
No início de fevereiro de 2022, à medida que a presença militar russa aumentava nas fronteiras da Ucrânia e os rumores de guerra se intensificavam, cheguei a Kiev para cobrir a crescente tensão.
No fundo, porém, ainda não acreditava que a guerra realmente iria acontecer. Continuei dizendo à minha esposa que duas semanas depois estaria de volta em Moscou.
Início
No dia 14 de fevereiro, eu e outro repórter da BBC, Slava Khomenko, fomos à cidade de Vovchansk, na região de Kharkiv, perto da fronteira com a Rússia.
Dez dias depois, esta cidade estaria sob ocupação russa, mas na época os moradores locais não cogitavam tal possibilidade.
Quando Slava e eu os perguntávamos o que fariam se houvesse uma eventual invasão, eles encolheram os ombros e disseram: ‘Sobrevivemos aos alemães de uma forma ou de outra’.
Estavam falando sobre a Segunda Guerra Mundial.
No caminho de volta para Kiev, paramos ao lado de uma placa de trânsito para a cidade de Peremoha, que significa “vitória” em ucraniano, e tiramos fotos ao lado dela.
Como nenhum de nós pensava que a guerra estava prestes a começar, pensamos que isso nos faria lembrar daqueles dias de ansiedade.
Em 24 de fevereiro, acordei em meu quarto de hotel em Kiev quando um funcionário bateu na porta com as palavras: ‘Senhor, parece que estamos sendo bombardeados’.
A guerra havia começado.
Desci até o abrigo antiaéreo do hotel e observei as brincadeiras dos filhos de um casal de turistas espanhóis, encarando o que estava acontecendo como uma divertida aventura.
Eles não conseguiam compreender as sirenes de ataque aéreo ou por que não podiam sair.
Nos dias seguintes, passei muito tempo no apartamento de um amigo meu em Kiev, onde muitos jornalistas se reuniam, trocavam informações e conversavam.
O apartamento era animado, mas o resto daquela parte de Kiev (Podil) parecia morta, quando geralmente é uma área movimentada, cheia de vida e energia.
Seis semanas depois, quando as forças russas se retiraram dessas cidades e vilas — apresentando essa retirada como um “passo de boa vontade” — o mundo ficaria sabendo dos hediondos crimes de guerra que aquelas forças haviam cometido ali.
No entanto, as autoridades russas, seguindo sua longa tradição, alegariam que era uma história falsa “inventada pelos serviços de segurança ocidentais”.
No final do dia 28 de fevereiro, atravessei o rio Dniester da Ucrânia para a Moldávia.
Já havia percebido que voltar para Moscou seria impossível. Após cobrir a guerra da Rússia contra a Ucrânia, arrisquei passar muitos anos atrás das grades.
A Moldávia estava cheia de refugiados ucranianos e os moradores locais acompanhavam ansiosamente as notícias do front.
Muitos temiam que, se as tropas de Putin chegassem a Odessa, seu pequeno país seria um alvo fácil para a ocupação russa. Naquela época, ainda não estava claro se a Ucrânia seria capaz de resistir à agressão de Moscou.
Peguei um trem da Moldávia para a Romênia. Também estava cheio de refugiados. Uma menina de quatro anos me perguntou: ‘Logo vamos para casa, certo?’ Não sabia o que responder.
Desde o início da invasão, a Rússia aprovou leis que proíbem o jornalismo independente de qualquer forma.
Após um ano desta guerra, fica claro que Vladimir Putin falhou em seu principal objetivo: destruir a Ucrânia.
No entanto, o que conseguiu foi destruir a Rússia, sua classe média, sua intelectualidade e suas elites culturais.
Nunca poderemos voltar a Moscou como era antes da guerra.
Mas adoraria voltar para a Rússia pós-Putin. E então fazer uma viagem à Ucrânia do pós-guerra para ver Donetsk, Mariupol e a Crimeia, não mais ocupadas pela Rússia.”