Raquel Dodge é a personagem da semana? Ou o personagem da semana? A posse da procuradora-geral da República suscitou a questão. Com ela, outras palavras que dão nó nos miolos. Femininas ou masculinas? É o caso de libido, anátema, telefonema, milhar, milhão, omelete. Desafiados, falantes tremem nas bases. Se têm um dicionário por perto, recorrem a ele. Caso contrário, chutam. Aí correm risco: têm 50% de chance de acertar. E 50% de errar.
Personagem
Personagem remete a caso de amor da mitologia grega. A história se passou no Olimpo. Hermes se apaixonou por Afrodite (Vênus). Casaram-se e tiveram um belo filho. Que nome lhe dar? Sugestão daqui, palpite dali, resolveram adotar hábito pra lá de conhecido dos brasileiros. Chamaram-no Hermafrodito – um pedacinho vem do nome do pai; o outro, da mãe.
O garotão era lindo. Ninguém resistia aos encantos de criatura tão especial. A ninfa Salmaris caiu de amores por ele. A paixão era tal que comoveu os deuses. Cheia de truques, a mocinha conseguiu que eles fundissem os dois num só corpo.
Daí nasceu a palavra andrógino. O vocábulo é composto de andros (homem) e gynê (mulher). O andrógino possui, ao mesmo tempo, a natureza feminina e masculina. É o caso de personagem. A palavra joga nos dois times. Pode ser usada, indiferentemente, nos dois gêneros: Raquel Dogde é a personagem da semana. Raquel Dodge é o personagem da semana. Rodrigo Janot foi personagem polêmico. Rodrigo Jantot foi personagem polêmica.
Omelete
A fritada de ovos bem batidos que a gente recheia de delícias ao gosto do freguês nasceu na França. Lá, chama-se omelette. Aqui ganhou o nome de omeleta. Mas o azinho final não pegou. Ficamos com omelete, como a matriz. E o gênero? A gostosura joga no time de personagem. Pode ser feminina ou masculina: Eu comi um omelete de queijo. Ela comeu uma omelete completa.
Libido
Você diz o libido ou a libido? Respondeu a libido? Acertou. Libido, você sabe, é o desejo sexual. A palavra termina em o. Normalmente seria masculina como o livro, o copo, o sapato. Mas é feminina como a foto e a moto. Moto e foto terminam em o, mas usam saia, batom e salto alto. Diga a libido e caia na luxúria.
Anátema e telefonema
Anátema (excomunhão) nasceu grega, virou latina, depois portuguesa. Telefonema tem o mesmo berço. Veio ao mundo na terra de Aristóteles. Ambas têm dois pontos comuns além da origem. Uma: terminam em a. A outra: são masculinas: o anátema, o telefonema. Trocar o gênero? Valha-nos, Deus! O anátema vem a galope.
Milhar, milhão
Você diz uma milhar de mulheres? Uma milhão de vezes? Claro que não. Mas, volta e meia, a duplinha vira feminina na boca de desavisados. O tropeço ocorre quando é seguida de nome feminino. Olho vivo! Cair na esparrela é proibido. Milhar e milhão são machinhos e não abrem: Os milhares de pessoas se dirigiram ao parque da cidade. Os milhões de crianças pedem escola de qualidade.
Leitor pergunta
Sou leitor atento de jornais. Presto atenção à notícia e à língua. Outro dia, tropeço pra lá de comum me deixou de orelhas em pé. Duas frases em duas matérias diferentes caíram na cilada do sujeito. Ei-las:
Diz o governo: “Não faltará recursos para financiar a safra”.
Diz o hipermercado: “Está liberado mais descontos”.
Sujeito fora da ordem direta derruba muita gente, não?
(José Ricardo Antoni, Brasília)
Você tem razão. Se o sujeito estivesse na frente do verbo, ninguém cairia na armadilha. O verbo concordaria com ele como manda a gramática. Assim: Recursos para financiar a safra não faltarão. Mais descontos estão liberados.
Na ordem inversa, nada muda. O verbo mantém-se vassalo do sujeito: Não faltarão recursos para financiar a safra. Estão liberados mais descontos.
Recado
“É quase lapilassada afirmar que só tem direito de errar quem conhece o certo. Só então o erro deixa de o ser para se tornar um ir além das convenções.”
Mário de Andrade