Em seu bicentenário de formação como nação soberana, que independência falta ao Brasil fazer? A agenda é extensa, mas há poucos elementos que são determinantes dos demais. Tais elementos criaram traços da identidade nacional e por isso exigem imenso esforço para serem alterados, na avaliação de historiadores e estudiosos do tema.
O Brasil independente nasceu como uma monarquia escravocrata, calcada nas desigualdades, no patriarcado, no profundo desequilíbrio de forças e na busca de manutenção de privilégios a qualquer custo. Essas características vieram a definir comportamentos que duram até hoje nas relações sociais, econômicas, políticas e ambientais – embora 200 anos fossem tempo suficiente para mudá-los, segundo especialistas. Comemorar, palavra de origem latina que significa “lembrar juntos”, traz a oportunidade de revisão, de fazer novas escolhas e corrigir a rota para os próximos anos.
Nessa revisão, o diplomata Rubens Ricupero, que foi ministro da Fazenda e do Meio Ambiente no governo Itamar Franco, alerta para o perigo de se olhar a “fotografia” do momento em vez do “filme”. “O Bicentenário cai, talvez, no momento mais negativo possível, em meio a uma crise do processo civilizatório brasileiro”, diz.
“Sou historiador e não me lembro de outro momento da história do Brasil em que tenha havido uma baixa tão grande de autoestima.” Por isso, ele recomenda resistir à tentação de um julgamento totalizador que seja a síntese de tudo, por se tratar de um país tão complexo.
No livro “1822”, o jornalista Laurentino Gomes mostrou como o país, “que tinha tudo para dar errado, deu certo por uma notável combinação de acaso e improvisação, mas também sabedoria de alguns responsáveis pela condução dos destinos nacionais”. Ele explica que esse “deu certo” refere-se às perspectivas da época, não às de hoje.
Hoje, na visão de Gomes, o País está mais marcado por fracassos do que conquistas, ao desperdiçar oportunidades de reformas que poderiam ter sido feitas ao longo desses 200 anos. “O Brasil como nação independente falhou em tornar o Estado mais eficiente, menos burocrático e corporativista.”
Faltou garantir educação para todos, oferecer boas oportunidades à população, em especial os descendentes de africanos escravizados, em reduzir a pobreza e em formar cidadãos capazes de conduzir os seus próprios destinos em um ambiente de democracia. Gomes avalia que, apesar de sua dimensão territorial e seus incontáveis recursos naturais, o Brasil de 2022 é pobre e desigual. “A herança da escravidão nunca foi devidamente enfrentada.”
Tal quadro não resulta de um projeto fracassado ou incompleto de independência, na visão da historiadora e cientista política Heloisa Starling. “Foi vitorioso o projeto que esteve na matriz do estado nacional, voltado a garantir a monarquia e a manter o latifúndio e a escravidão”, afirma. “Em torno desse projeto de independência, floresceu uma sociedade autoritária, hierárquica e racista.”
Não se passaria incólume por quase 400 anos de regime escravista, o perverso comércio de almas que supõe a posse de uma pessoa por outra. O Brasil, como lembra Laurentino Gomes, recebeu ao longo de três séculos entre 4,5 milhões e 5 milhões de escravos, cerca de 40% do total traficado da África para o continente americano. Foi também o país do hemisfério Ocidental que mais resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir a própria escravidão — abolição que deixou os libertos à própria sorte. Sem contar que, antes de negra e africana, a escravidão brasileira foi indígena.
Para Gomes, o Brasil de hoje é consequência do seu peculiar processo de construção herdado dos portugueses ainda no período colonial e perpetuado após a Independência, em 1822. “Herdamos dos portugueses um Estado excessivamente burocrático e cartorial, cujo funcionamento é ainda hoje caracterizado por relações de clientelismo e nepotismo.”
“É possível dizer que herdamos de Portugal um sistema escravocrata estruturado e uma máquina burocrática muito pesada, com características que mais recentemente chamaríamos de patrimonialismo, ou seja, a mistura entre a esfera pública e a esfera privada”, diz a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz. Mas, ao mesmo tempo em que reconhece características da máquina colonial presentes até hoje na estrutura brasileira, ela refuta o determinismo histórico e a ideia de legado.
“É preciso dizer que o Brasil implementou um racismo estrutural e institucional nesses 200 anos de autonomia. Então não é possível jogar essa conta só nas costas de Portugal. E a ideia de herança me incomoda um pouco porque implica certa passividade da nossa parte”, diz, como se o País não tivesse responsabilidade sobre seus rumos.