Domingo, 12 de janeiro de 2025
Por Redação O Sul | 28 de fevereiro de 2022
Em 1996, Kiev já havia devolvido todas as armas soviéticas deixadas em seu território.
Foto: Reprodução/YouTubeDurante a Guerra Fria, a terceira maior potência nuclear do planeta não era o Reino Unido, a França ou a China, mas sim a Ucrânia. E com o colapso da URSS (União Soviética) em 1991, a nação recém-independente herdaria cerca de 3 mil armas nucleares deixadas por Moscou em seu território.
Três décadas depois, a Ucrânia está totalmente desnuclearizada. E o tema volta à tona agora que o país se encontra em uma posição delicada após a invasão territorial comandada pelo Kremlin, que ameaça reagir a qualquer tentativa de interferência das potências da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no confronto.
Mas o que aconteceu nas últimas décadas para que a Ucrânia passasse de uma das maiores potências nucleares do mundo para um país invadido por seu maior vizinho? Além disso, a presença dessas armas em território ucraniano teria ajudado a evitar a invasão?
Acordo em Budapeste
Nos anos 1990, a Ucrânia decidiu abrir mão das armas nucleares deixadas em seu território em troca de segurança e reconhecimento como país independente. Tudo foi acordado por meio do Memorando de Budapeste, um acordo assinado entre o governo ucraniano, a Rússia, o Reino Unido e os Estados Unidos após o fim da URSS.
No entendimento firmado em 1994 na capital da Hungria, a Ucrânia se comprometia a aderir ao TNP (Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares) e a devolver para Moscou as ogivas deixadas em seu território.
“Com o fim da URSS, parte do estoque de armas nucleares soviético foi deixada para trás em diversos países do Leste Europeu, e havia uma preocupação do Ocidente de que elas poderiam ser extraviadas ou mal utilizadas, trazendo risco para a Europa”, conta Vicente Ferraro Jr., cientista político e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP (Universidade de São Paulo).
Em troca da desnuclearização de Kiev, os governos da Rússia, dos EUA e do Reino Unido se comprometeram a “respeitar a independência, a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia” e a “abster-se da ameaça ou do uso da força” contra o país.
As prerrogativas eram muito importantes para o governo ucraniano naquele momento, já que o país só conquistou sua independência definitiva em 1991 e ainda lutava por reconhecimento internacional após a era soviética.
Em 1996, Kiev já havia devolvido todas as armas soviéticas deixadas em seu território. O memorando também foi assinado por Belarus e Cazaquistão, com as mesmas condições conferidas ao governo de Kiev.
“Sem armas e sem segurança”
A Ucrânia alega que a Rússia descumpriu o Memorando pela primeira vez em 2014, quando invadiu e anexou a Crimeia, região no leste do país onde fica a base naval russa de Sebastopol e a frota do mar Negro.
O governo ucraniano afirma ainda que as condições do entendimento também foram desrespeitadas quando o Kremlin passou a apoiar os grupos separatistas que comandam rebeliões nas províncias de Donetsk e Luhansk, na fronteira com a Rússia. O conflito na região já deixou mais de 14 mil mortos.
Desde que a ameaça de uma invasão russa ao território ucraniano se concretizou em 2022, o governo do presidente Volodymyr Zelensky decidiu invocar o Memorando de Budapeste mais uma vez.
“A Ucrânia recebeu garantias de segurança após abandonar o terceiro maior arsenal nuclear do mundo. Não temos mais essas armas, mas também não temos segurança”, disse Zelensky em um discurso em 19 de fevereiro. “Desde 2014, a Ucrânia tentou por três vezes convocar consultas com os Estados signatários do Memorando de Budapeste, mas sem sucesso. Atualmente, a Ucrânia fará isso pela quarta vez. Por uma última vez.”
Não houve tempo para qualquer consulta, e a invasão foi concretizada em 24 de fevereiro, com ataques à infraestrutura militar ucraniana em todo o país e envio de comboios russos chegando de todas as direções.
Após o discurso do líder ucraniano sobre o Memorando, o presidente russo Vladimir Putin ainda passou a usar as palavras de Zelensky para justificar suas ações.
Decisão “romântica e prematura”
Antes mesmo da assinatura do Memorando em Budapeste, membros da elite política ucraniana e especialistas em política internacional já previam a possibilidade de desrespeito ao acordo por parte de algum dos signatários.
Volodymyr Tolubko, um ex-comandante militar que foi eleito para o Parlamento ucraniano, argumentou em uma sessão Legislativa em 1992 que a ideia da Ucrânia se desnuclearizar totalmente em troca da promessa de segurança era “romântica e prematura”.
Segundo ele, o país deveria manter pelo menos algumas das ogivas soviéticas, que serviriam para “dissuadir qualquer agressor”.