A narrativa é de Victor Hugo, no clássico “Os Miseráveis”. Ao buscar uma casa, à procura de abrigo e alimento, o personagem Jean Valjean é recebido com bondade pelo bispo Myriel. Valjean é um ex-presidiário que tenta se redimir após ser liberado da prisão. Contudo, ignorando a generosa acolhida, no meio da noite, Valjean rouba a prata da casa e foge. Mas ele é capturado pela polícia e trazido de volta à presença do bispo. Momento crucial da história. Em vez de denunciar o ladrão, o religioso escolhe perdoá-lo e até mesmo dá a ele os castiçais de prata restantes, afirmando que ele os esqueceu. Esse ato de misericórdia e perdão transforma completamente Valjean, que decide mudar de vida e viver de acordo com os valores que o perdão foi capaz de suscitar. Essa cena simboliza o poder da bondade em transformar vidas e é fundamental para a jornada de redenção de Jean Valjean ao longo do romance. O bispo Myriel se converte em um modelo de compaixão e generosidade, deixando uma profunda impressão, não apenas em Valjean, mas também nos leitores, tornando-a uma das partes mais memoráveis e comoventes da obra de Victor Hugo, bem como oferece, ainda hoje, uma das sátiras mais contrastantes entre o sublime e o selvagem, entre a pureza e a degradação que tanto nos acometem.
No nosso cotidiano, porém, histórias de perdão e compaixão, como aquela que espelhou a misericórdia do Bispo de Digne são cada vez mais raras. O que vemos é a exacerbação do egoísmo, a proliferação de mentiras e o aumento da intolerância, fenômenos hoje atrelados e difundidos à velocidade da luz pelas mídias sociais. O que prepondera, de fato, muito mais do que histórias que comovam, são relatos que promovem inverdades, violência e competição desenfreada. Esse ambiente beligerante contamina as mais diversas áreas da vida social, política e cultural do mundo atual, cujas imagens de Javier Milei, candidato a Presidente nas eleições argentinas, empunhando uma motosserra em cima de um palanque e espumando ódio, conferem cores estarrecedoras ao quadro atual de inquietude sectária. No Brasil, continuamos a digerir o período pós-eleitoral com as cicatrizes teimosamente expostas pelo pugilismo verbal que permeia muitos discursos. Na miragem de sermos grandes, oscilamos pendularmente entre o desencanto de virarmos uma Venezuela e o sonho de vivermos como dinamarqueses, para o desalento dos antagonistas em guerra perpétua que projetam os dois cenários com idênticos fervor e engano.
Entretanto, até mesmo o raivoso Milei e as hordas sectárias que aviltaram a democracia brasileira haverão de serem contidos, senão pelo próprio juízo, o que parece improvável, mas pelo arcabouço jurídico e institucional vigentes. Não há como vencer subjugando o adversário, como se fazia antes do estado moderno existir. Hoje, é preciso conter a cólera dos inconformados pelas engrenagens sinuosas do estado democrático de direito. Do equilíbrio dessa tensão permanente, depende o futuro da democracia. Fazer aquilo que é certo, porém, tem um custo muito grande e não se constitui tarefa para homens menores. A tentação por atalhos pode soar atraente, conforme tristemente testemunhamos no nosso famigerado 08.01. Nesse contexto tumultuado, olhar para o futuro vai exigir crescente desprendimento e ousadia, de sorte a não deixar o pessimismo reinante solapar um oceano de oportunidades que paradoxalmente convive com a instabilidade. Como bem lembrou, há poucos dias, Murillo de Aragão: vivemos num ambiente no qual a corrupção, o patrimonialismo e o corporativismo envenenaram tanto a superfície quanto as entranhas do sistema político, tornando a assepsia da descontaminação institucional tarefa urgente e indelegável. Talvez a misericórdia seja um dos caminhos, mas permanece uma dúvida legítima se os corações recalcitrantes de nossos políticos se deixariam tocar por tamanha obra de perdão, algo talvez indigno, até mesmo para um coração piedoso como o do bispo Myriel.