Reivindica o tempo da sua vida. Não deixe que lhe roubem sua riqueza mais preciosa, os minutos, horas, dias e anos que por aqui estiver. Não permita também que o tempo passe sem que você deixe a sua marca, evitando que a implacável ampulheta veja o seu último grão desperdiçado ao contemplar uma vida despida de sentido. Combata vigorosamente a negligência, a preguiça e a procrastinação e não conceba nenhum pedaço de vida jogado fora. Use todo o seu potencial e se eternize em vida, pois nenhum sentido existe em esperar a eternidade e desperdiçar a existência que nos foi dada. Tome posse de suas horas e tenha ciência de que somente o tempo nos pertence, nada mais. Dos ensinamentos estoicos que até hoje nos impactam, a visão de Sêneca sobre o passar do tempo e a emergência de se ter consciência disso, talvez seja um dos seus principais legados. Aquilo que o preceptor de Nero escreveu não perdeu atualidade. Ao contrário, os tempos imprecisos e nervosos que vivemos tornam ainda mais urgentes e necessários tais conselhos.
Nessa perspectiva, separados por quase 2.000 anos, o pensador Sêneca e o futebolista Pelé se encontram em simbiose atemporal. Um, pelo gênio do pensamento; outro, pelo gênio da arte combinatória de suas competências esportivas, este último fazendo da bola o seu mundo e plasmando o uso do seu tempo de forma tão magistral que colheu a admiração reverencial de todo o Planeta. Sêneca, ao ocupar-se com a forma correta de se viver, também alcançou, através do manejo sábio das palavras, a excelência de um existir pleno e a consagração em seu meio, delineando para outro gênio, muito tempo depois, a base do que hoje conhecemos como filosofia estoica, sugerindo ser possível sobreviver e prosperar em ambientes turbulentos, desde que munidos de coragem e desprendimento, assim como o fez tão espetacularmente o ébano da Vila Belmiro.
Pelé, premiado pela contingência de uma condição física talhada para o futebol, assumiu como ninguém a consciência do seu tempo. Essa delimitação temporal do espaço do gênio foi sempre destacada pelo cidadão Edson Arantes do Nascimento, ao tratar o Rei Pelé na terceira pessoa, como uma entidade que se desprendeu do criador e construiu sua obra única e irretocável durante um rasgo de tempo no qual fundiram-se a magia, a arte, o improviso e o acaso. Pelé também avocou sua majestade, fez-se senhor de suas qualidades e consolidou a sua inigualável condição com a soma de todos os seus talentos, na junção de técnica, equilíbrio, velocidade, precisão, inteligência corporal-cinestésica, força mental, determinação, garra e ambição. Esse encontro incomum entre o sujeito e suas circunstâncias, tocado ainda pelo imponderável, convencionou-se tratar como genialidade. O gênio excede a nossa capacidade de sintetizar com precisão o transbordamento do que nos encanta e nos aproxima do transcendental. Pelé fez isso, mas Pelé foi muito além.
Nem o alarido político vivido pelo País na virada de ano foi capaz de sufocar a estrondosa repercussão internacional da morte do nosso maior ídolo. O mundo reverencia um Rei que já foi menino, como tantos milhões de infância e juventude incerta, mas que germinou para uma plenitude única e esplendorosa. Agora, Pelé dos deixa, levando um pouco de nós também, que tolamente acreditamos domar o relógio, enquanto o inclemente escorrer das horas nos consome a cada dia. O alerta de Sêneca para uma vida prudente e sábia, na qual o nosso protagonismo pode ser demarcado no tempo, como temos a chance de fazer e muitas vezes não fizemos, mas que portentosa e admiravelmente o filho de Dondinho e Celeste o fez, ecoa feito uma lição eterna.
E Caetano viu o menino correndo, Caetano viu a força estranha do tempo que a voz de outro Rei eternizou. Essa força estranha brincando ao redor do caminho daquele menino… O sol ainda brilha na estrada e ele nunca passou… A vida é amiga da arte… Por isso essa força estranha no ar. Por isso é que ele canta, por isso Pelé jogou por todos e por cada um de nós. Tempo… Maldito tempo que nos tirou Pelé. Tempo… Bendito tempo que nos legou Pelé!