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Ser ateu, dar sentido ao ateísmo

Ser ateu é um modo de estar no mundo. Antes de ser implicação com a realidade das divindades, o ateísmo é um desdobramento da reflexão filosófica sobre os limites entre o sentido da existência e o absurdo de existir.

Eternamente indaga-se o sentido da vida. Fala-se do assunto em sério, mas de tão vulgarizado, também já se o aborda como gracejo. A Antiguidade discutia o tema, e pensadores importantes dispensavam a ideia de deuses.

Os filósofos que admitiam a possibilidade de um poder gerador consideravam a hipótese de alguma energia propulsora, jamais de um deus guardião da moral, dos “bons” costumes, ou das atividades sexuais de alguém.

Eram, naqueles tempos, outros deuses; outros eram os seus sentidos. O deus cristão (abraâmida) propagado na tradição europeia é outra coisa. Vindo dos judeus, tornou-se cristão, acabou católico, depois variou por confissões.

O deus católico é a divindade do chamado 13º apóstolo, Constantino. No século quarto, como imperador de Roma, com o poder que tinha, impôs essa crença ao mundo. Era simples: ou se era católico, ou se era defunto.

É história sabida. O poder religioso atravessou a Idade Média, a Renascença e mesmo parte da Modernidade. Foram mil e quinhentos anos de feroz controle. Só com a Revolução Francesa a coisa começou a sofrer reversão.

Grupos ateus de internet, sobretudo, estão em franco combate com esse deus cristão\católico\protestante\evangélico. Isso é importante porque desmistifica, traz a discussão para o raso, desmoraliza o “santo nome do senhor”.

Essa, todavia, não é a questão de fundo. A relevância filosófica está nas decorrências existenciais do ateísmo. Declarado morto por Nietzsche, a realidade de Jeová é trazida novamente à pauta, sobretudo nos meios intelectuais.

E Nietzsche nem discute a existência do deus semita; di-lo morto. A recalcitrância religiosa insiste que o filósofo se trai: “proposta a morte, admitida a existência”. Nada disso. Nietzsche declara a morte da ideia de um deus.

Inexistindo um princípio (um criador que daria sentido às coisas do mundo), vivemos absurdamente. Seria dizer: a vida não tem sentido, a morte não tem sentido, o viver não tem sentido. Nada tem nem faz sentido algum.

Ou deus, ou nada, dirá Kierkegaard. Se houver algum significado para a vida, o deus cristão será a sua fonte derradeira. Se não existe no princípio e no fim esse significado, nada terá significado para coisa nenhuma.

Dostoiévski, cristão atormentado, um tanto contemporâneo de Kierkegaard, dirá, na postulação de Ivan Karamazov sobre a mesma necessidade de um deus regulador, sem o qual não haveria virtude, tudo se poderia.

São hipóteses deístas por exclusão e por carência justificadora. Sofregamente “tem que existir deus”. Camus e Sartre se apropriam desse existencialismo e o fazem ateu.

Dirão: não existe deus e a vida não tem mesmo sentido.

Como a existência precede a essência, quer dizer, como nós não somos projeto de um deus, temos que dar conta de nós mesmo. A vida terá o sentido que nós construirmos historicamente para a vida. Somos “condenados” a isso.

Sartre e Camus discrepam um tanto. Para Camus, mesmo o gesto histórico resta absurdo. Sartre defende a invenção de sentidos: a responsabilidade do engajamento nos rumos para os quais conduzir nossas circunstâncias.

Essa é a demanda do ateu: o que fazer da vida, do viver, da existência? Seguramente ninguém pode restringir sua militância à publicação de charges jocosas nas redes sociais, ainda que elas se prestem a uma ironia de combate.

O catolicismo alcança 34,3% da população jovem brasileira; ateus e agnósticos são 25,5%; evangélicos somam 14,9%. A pesquisa (nov,2015) é da PUCRS, ou seja, vem de uma instituição insuspeita (https://surl.li/kbsdws).

O fenômeno do ateísmo, por ocorrer entre jovens, tende a crescer. Como não está programada para buscar o céu, essa juventude talvez se engaje no delineamento de suas circunstâncias. Militar politicamente, diria Sartre.

Discutir ideologicamente a Sociedade: valores de viver a vida. O Brasil não está para falar sobre convivência pública. O momento histórico é de descrença na política. O momento histórico é, sempre, de retomada da política.

A política tradicional está religiosa: quase 100% dos nossos deputados se declaram como tal (ISER, out,2023, https://surl.li/jlycmr). Há outros meios de construção de sentidos. Os jovens os estão encontrando. Graças a deus.

(Léo Rosa de Andrade – Doutor em Direito pela UFSC, Psicanalista e Jornalista – Instagram: @leorosadeandrade)

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