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Sinalização da Suprema Corte contra o aborto põe em risco outros direitos baseados na “privacidade” nos Estados Unidos

Se o caso Ros vs. Wade cair, pode abrir caminho para o movimento antiaborto prosperar. (Foto: Reprodução de vídeo)

Horas depois de o jornal digital Politico publicar um esboço de decisão da Suprema Corte, assinada pelo juiz Samuel Alito, apontando que a maioria dos magistrados poderia derrubar a jurisprudência que permite a realização de abortos legais nos EUA, em votação prevista em junho, lideranças democratas e ativistas se uniram em pesadas críticas ao texto.

Para elas, se a medida for confirmada, seria o primeiro passo para o fim de outros direitos obtidos nas últimas décadas, como o acesso a métodos anticoncepcionais e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Na terça-feira (3), o presidente Joe Biden, que defendeu o direito das mulheres de tomarem decisões sobre seus próprios corpos, sem interferência do Estado, prometeu agir para que a questão seja levada ao Congresso e levantou um debate existente no meio jurídico: uma das bases do julgamento conhecido como Roe versus Wade, ligado ao direito ao aborto, é o “direito à privacidade”, algo que não está na Constituição e que pautou outras decisões sobre direitos individuais.

“Isso significa que toda decisão relacionada à noção de privacidade poderá ser questionada”, disse Biden. “Se a lógica da decisão for mantida, toda uma gama de direitos será questionada. E a ideia de que deixaremos a cargo dos estados tomarem essas decisões será uma mudança fundamental em relação ao que já fizemos.”

Em artigo para a revista The Atlantic, a professora de Direito Kimberly Wehle, da Universidade de Baltimore, afirma que a noção do “direito à privacidade” já aparecia em decisões nos anos 1920, como no caso Meyer versus Nebraska, de 1923, quando a Suprema Corte considerou ilegal uma lei que proibia o ensino de alemão em escolas particulares.

Nas décadas seguintes, o direito à privacidade também foi a base de decisões em casos como Loving versus Virginia (1967), que derrubou as últimas leis impedindo o casamento interracial, ou, dois anos antes, em Griswold versus Connecticut, que garantiu aos casais o direito de usar métodos contraceptivos sem qualquer tipo de interferência do Estado.

Para juristas, decisões que podem estar em risco caso Roe versus Wade seja derrubada.

“A lógica do texto, a de que o aborto não pode ser um direito porque os estados o criminalizavam no século XIX, ou porque não aparece no texto da Constituição, pode facilmente ser aplicada a outros direitos sobre a privacidade’, afirmou Mary Ziegler, historiadora jurídica e professora da Faculdade de Direito da Universidade do Estado da Flórida. “O esboço tenta distinguir o aborto de outros temas, mas não passa muita confiança, e pode não durar muito tempo.”

“Questão moral”

Na minuta em que aponta os argumentos para derrubar Roe versus Wade, Alito, um juiz indicado por George W. Bush (2001-2009) e alinhado ao campo conservador, faz uma lista de outros direitos que foram obtidos pelos americanos mas que, tal como o aborto, não estão explicitamente previstos na Constituição.

Ele menciona, por exemplo, o caso Loving versus Virginia, o direito de se casar na prisão (1987), o direito de tomar decisões sobre a educação dos filhos (1925), o direito de não ser esterilizado sem consentimento prévio (1943), e o direito de manter relações sexuais (2003) e de se casar com pessoas do mesmo sexo (2015).

“[Caso confirmada a decisão] ela pode significar problemas para outras decisões, mesmo que não imediatamente, incluindo [o caso] Griswold”, apontou Ziegler.

Alito, que chamou a decisão de Roe versus Wade de “cheia de erros” e “equivocada”, tentou fazer uma diferenciação entre o direito ao aborto, hoje vigente nos EUA, e os demais cenários por ele mesmo mencionados. O magistrado aponta que, embora direitos como o casamento entre pessoas do mesmo sexo não estejam firmados na Constituição, eles não trazem a “questão moral imposta pelo aborto”, sugerindo que não poderiam ser derrubados em seguida.

“A argumentação e a própria existência dessa opinião não me convencem de que essa maioria vai querer parar em Roe”, afirmou ao Politico o professor de Direito da Universidade do Texas, Stephen Vladeck, referindo-se à configuração atual de seis conservadores e três progressistas na Suprema Corte americana. “Mesmo que o esboço se limite ao aborto, [ele poderia] ser aplicado em outros contextos que não estão suficientemente enraizados na tradição contemporânea americana.”

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