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Sucesso na novela das 21h, a gaúcha Valéria Barcellos relembra abandono do pai, facadas e câncer

Atriz celebra a representatividade na TV enquanto mulher trans. (Foto: Divulgação)

Shine: em português, brilho. E brilhar é justamente o que Valéria Barcellos tem feito. Em meio a gargalhadas contagiantes, fez reflexões e cavou lembranças. Quem a vê como a Luana Shine de “Terra e paixão”, novela das 21h da TV Globo, pode não saber, mas esta multitalentosa artista traz no currículo, além de muitas personagens, experiências com fotografia, performances, literatura e música.

Perder oportunidades nunca foi opção para a gaúcha de 43 anos, nascida em Santo Ângelo, no interior do Rio Grande do Sul. Ela aprendeu outras três línguas depois que foi faxineira numa escola de idiomas e chegou a a dar aulas para crianças. Venceu o primeiro festival de música aos 6 anos, e esse talento a levou a muitos palcos.

Em 2018, quando se apresentava no formato voz e violão, precisou arrumar rapidamente uma banda e aceitar o convite para abrir o show de Katy Perry em Porto Alegre. Entre 2019 e 2020, um câncer a tirou de cena por um tempo, mas parece ter lhe dado mais força.

— Foram cerca de dois anos de tratamento, foi bem difícil, agressivo. Perdi o cabelo, não conseguia comer, tive enjoo, todas aquelas coisas horrorosas. E, no meio disso, tinha que trabalhar, porque os boletos não paravam de chegar — lembra ela, que registrou o doloroso processo num livro.

1) Como é a história da sua carreira até aqui?

Luana é uma estreia com os dois pés direitos, no horário nobre, com grandes nomes… Tenho uma trajetória grande na música, de mais de 30 anos, sou uma cantora que atua. Além disso, tenho também uns 25 anos no teatro. No Rio, por exemplo, fiz um trabalho lindo no Galeria Café (em 2016) em que eu convidava artistas para cantar comigo. Na atuação, fiz mais cinema, curtas, ganhei prêmio como melhor atriz…

2) O que já precisou enfrentar?

A gente precisa provar que é artista. O meu trabalho tem como base o meu corpo, que demarca território. E é lógico que, como uma pessoa que se propõe a isso para marcar resistência, enfrento os mais variados preconceitos. Desde as pessoas duvidando do meu fazer artístico, do meu talento, até a violência mesmo. Eu já fui esfaqueada por uma pessoa na rua porque eu estava caminhando, em Porto Alegre, em 2015. É uma luta diária para sobreviver, até com a gente mesmo. Às vezes desistimos de ir aos lugares, repensamos sair de casa porque sabemos que vai ter alguma violência. Hoje enfrento ainda muita coisa, apesar de estar em destaque na novela. Mas acredito muito na arte como uma chave de mudança.

3) Para a personagem, precisou mudar algo?

Luana mudou a minha vida completamente! Saí de Porto Alegre e hoje estou morando no Rio, com uma das vistas mais lindas dessa cidade, na Barra da Tijuca, de frente para o mar. Minha personagem é muito diferente de mim, tem a unha comprida, eu já as uso curtinhas. Perdi o cabelo todo por conta da quimioterapia e hoje tenho ele um pouco mais curto, Luana tem um cabelão. Ela é sonhadora, pensa em contos de fadas, quer se casar com um príncipe. Eu sou muito pé no chão, prática.

4) Como foi o processo de se reconhecer?

O reconhecimento não vem do entendimento de quem eu era, mas de quem eu não era. Porque até então eu era igual à minha mãe. Até descobrir, tomando banho, que eu não era igual a ela fisicamente. Mas até hoje sou igual a ela, mesmo ela morando numa cobertura no céu. A afirmação de quem eu sou hoje sempre esteve comigo.

5) Como é hoje a sua relação com a família?

Eu descobri que tenho uma família maior do que eu pensava, estão aparecendo tantos primos… E o mais doido: uma família que se orgulha de mim. Falo com meus irmãos quase diariamente, e, mesmo eles estando ainda no Sul, estão torcendo pela Luana tanto quanto eu. Sou a primeira de muitas gerações a conseguir chegar tão longe artisticamente. Tive tios artistas, mas que desistiram. Eu sou a que não desistiu.

6) Você falou da sua mãe. E o seu pai?

O meu pai genético deixou a minha mãe quando soube que ela estava grávida, mas eu o conheci aos 8 anos. Eu me senti tão assustada, com medo de que ele me levasse para longe da minha mãe, que eu fugi. Aos 17, eu tentei reencontrá-lo, mas ele morreu no mesmo dia. Já com o meu pai de adoção, eu tenho uma relação cordial, nada além disso. Ele mora em Santo Ângelo com a nova esposa. Me colocou pra fora de casa.

7) Em um dos livros que escreveu, você relata sua luta contra o câncer. Como foi o período?

Muito dolorido, tive um sarcoma de pele. Eu estava fazendo uma peça na época e descobri o diagnóstico no dia da estreia. O lockdown (por conta da pandemia do coronavírus) chegou logo quando terminei a última sessão de quimioterapia. Peguei covid, fiquei péssima porque estava com a imunidade baixa. Foram dias de muita luta. A Deusa, porque acho que Deus é uma mulher, resolveu dizer para mim: “Vamos dar um tempo para essa garota, dar uma novela bonita para ela fazer, ela já sofreu demais” (risos). Mas saí muito fortalecida de tudo isso, com mais fome de viver do que eu já tinha.

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