Quarta-feira, 25 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 20 de janeiro de 2024
A Justiça de Alagoas determinou a imediata suspensão dos efeitos da lei municipal que obriga a mulher grávida que for realizar o aborto legal a ver imagens de fetos antes do procedimento. A decisão divulgada nesta sexta-feira (19) é do desembargador Fábio Ferrario, relator do processo, que considera que a “lei desrespeita o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde”.
A decisão ocorreu após a Defensoria Pública se manifestar contrária e pedir a suspensão da lei, que detalha que os métodos cirúrgicos utilizados para o procedimento abortivo sejam passados às mulheres, assim como os seus “riscos e consequências físicas e psicológicas”.
O aborto é permitido por lei no Brasil em casos de gravidez decorrente de estupro, de risco à vida da gestante ou de anencefalia do feto, e deve ser oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
O desembargador Fábio Ferrario determinou ainda que a sua decisão seja apreciada pelo Pleno do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL). Ele destacou que a legislação desconsidera o estado de vulnerabilidade da mulher que tem direito ao aborto legal.
“No referido protocolo, são apresentados conceitos e orientações para que o Poder Judiciário não seja mais uma instituição a reforçar desigualdades estruturais e históricas contra a mulher”, diz um trecho da decisão.
A decisão determina que a Câmara de Vereadores da Capital e o Município de Maceió prestem informações acerca da lei impugnada, no prazo de 30 dias.
Contexto
O aborto é permitido no Brasil em casos de risco à vida da gestante, gravidez resultante de estupro e feto com anencefalia. Sancionada no último mês de dezembro, a lei maceioense estipulava uma série de procedimentos a quem fizesse tal escolha.
Conforme a norma, a mulher e seus familiares precisavam ter encontros com uma equipe multidisciplinar. Nessas ocasiões, deveriam ser apresentados, “de forma detalhada e didática” — com ilustrações e vídeos —, o desenvolvimento do feto semana a semana, os métodos cirúrgicos usados no aborto e todos os possíveis efeitos colaterais físicos e psicológicos.
A Defensoria Pública de Alagoas ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade estadual contra a lei. Segundo o órgão, o município não tem competência para legislar sobre o tema, que envolve Direito Civil e Direito Penal. Outro argumento foi a falta de interesse peculiar local.
Na visão da Defensoria, a norma desrespeitou trechos da Constituição estadual que estabelecem o dever do Estado de garantir a dignidade das pessoas e preservar seus direitos invioláveis, como o direito à saúde.
Fundamentação
Para Ferrario, é “evidente a ausência de peculiar e restrito interesse local”, já que o tema do aborto não se limita à realidade das mulheres de Maceió. Na avaliação do desembargador, a lei “representa uma burla ao sistema constitucional de repartição de competências”.
Segundo ele, também não existe “uma situação fática específica e particular que justifique o tratamento do referido tema de maneira diferente pelo município”. Ou seja, não haveria por que submeter as cidadãs maceioenses, “de forma desarrazoada, a uma realidade diversa e limitadora das demais do país, no que pertine à valia das suas decisões mais íntimas”.
Além disso, a norma “desconsidera completamente a situação de fragilidade e vulnerabilidade em que se encontra uma mulher que está prestes a realizar um aborto”.
O relator destacou que a decisão por fazer um aborto é difícil e delicada: “A mulher não escolhe ser estuprada, não escolhe correr risco de vida em sua gravidez e não escolhe ter um feto com anencefalia. Todas essas situações são extremas e bastante dolorosas, sendo obrigatório, por isso mesmo, ao Estado em sentido lato, a criação e implantação de politicas públicas destinadas a suavizar e protegê-las desse sofrimento e suas inegáveis sequelas”.
De acordo com Ferrario, a partir do momento em que o Estado obriga as gestantes a assistir a vídeos de cirurgias de aborto e promove avisos incisivos sobre todos os possíveis efeitos colaterais, “aumenta-se o sofrimento psicológico e emocional da mulher, violando seu direito fundamental à saúde”.
No caso das mulheres que sofreram violência sexual, “o município termina por atuar como agente de revitimização, praticando uma segunda e verdadeira violência institucional”.
As previsões da lei, segundo o magistrado, representam “uma indevida e profunda interferência na autonomia da mulher”. Isso viola a sua dignidade, pois o poder público “passa a coagi-la, de maneira violenta, mas aparentemente legítima e pretensamente sutil”, a não fazer um aborto, mesmo nas hipóteses legais.
“Sob o equivocado pretexto de esclarecer e orientar, a lei municipal comete e reforça violências contra a mulher”, assinalou o relator. A norma, por melhor que tenha sido sua intenção, “ressuscita uma culpabilização perpetrada contra essas mulheres que optaram por interromper a vida intrauterina, em decorrência de uma dolorosa e inesperada circunstância”.
Ferrario ressaltou que “a mulher deve ser tratada como autêntico sujeito de direitos, e não como objeto de interesses políticos ou ideológicos”. O direito à autodeterminação é um dos mais imprescindíveis. “Logo, é terminantemente ilegítimo que a escolha seja feita previamente pelo ente público.”
Para ele, em um momento de tanta fragilidade da gestante, o Estado não pode “tomar para si o poder de decidir sobre o que a mulher verá antes de realizar um aborto em casos que são permitidos pela legislação brasileira”.