Suzane von Richthofen se inscreveu em um concurso público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para o cargo de escrevente técnico judiciário, que tem salário de R$ 6.043. Desde janeiro de 2023, Suzane cumpre pena em regime aberto. Ela foi condenada a 39 anos e seis meses de prisão pela morte dos pais, em 2002.
Um dos requisitos para assumir um cargo público em São Paulo é “ter boa conduta”, conforme o estatuto dos servidores do estado, e isso envolve a apresentação de antecedentes criminais, segundo o TJ-SP.
No entanto, para advogados ouvidos pelo g1, a condenação de Suzane não deve ser um impedimento para a participação em concursos ou mesmo para assumir cargos públicos.
O edital de concurso de escrevente estabelece que os participantes não podem ter sido condenados por ato de improbidade ou crimes contra o patrimônio, a administração e a fé pública, crimes sexuais, ou previstos na lei de drogas. Não há especificações sobre homicídio.
Além disso, Suzane pode ser beneficiada por uma tese que o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou em outubro do ano passado, de repercussão geral, ou seja, que deve ser levada em consideração em todos os processos semelhantes a partir de então.
Conforme o STF, “condenados aprovados em concursos públicos podem ser nomeados e empossados”, desde que não haja “incompatibilidade entre o cargo a ser exercido e o crime cometido” ou “conflito de horários entre a jornada de trabalho e o regime de cumprimento da pena”.
Isso significa que, “no caso da Suzane, faria sentido, por exemplo, se o concurso proibisse a participação de candidatos condenados por fraude de documentos, processos, porque um escrevente vai mexer com isso”, explica a advogada Marcela Barretta, especialista em concursos públicos.
O crime de homicídio não poderia ser um impedimento, diz Barretta, pois não tem relação direta com as funções que serão exercidas no cargo.
Entre as atribuições de um escrevente, estão atividades de suporte técnico e administrativo às unidades do TJ, dar andamento em processos judiciais e administrativos, atender ao público e elaborar e conferir documentos.
O TJ-SP não informou se ter antecedentes criminais significa, automaticamente, descumprir o requisito de “ter boa conduta” e disse que não se manifesta sobre casos concretos.
De acordo com os advogados ouvidos pela reportagem, ainda que Suzane fosse impedida pelo TJ-SP de assumir o cargo por causa dessa regra, se tivesse sido aprovada, ela poderia recorrer da medida por meio de uma ação judicial.
“Quando digo que um funcionário tem que ter boa conduta, não estou me referindo ao passado dele, mas sim ao comportamento dele enquanto funcionário público, se ele demonstra comportamentos inadequados, incompatíveis com a função”, afirma Hugo Almeida, coordenador do Núcleo de Execução Penal da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB-SP.
“E uma pessoa pode ser avaliada com má conduta sem ter praticado crimes”, pontua o professor Gustavo Badaró, titular de processo penal da Faculdade de Direito da USP.
Direitos políticos
Outro ponto levantado pelos especialistas é que, quando uma pessoa é condenada criminalmente, em sentença transitada em julgado (que não cabe mais recurso), ela fica com seus direitos políticos suspensos, enquanto estiver cumprindo a pena. Esse é o caso de Suzane.
E “estar em gozo dos direitos políticos” costuma ser um dos requisitos para assumir um cargo público, conforme os estatutos dos servidores (federal, estaduais ou municipais).
Apesar disso, a decisão de outubro do STF diz, justamente, que a suspensão dos direitos políticos em caso de condenação criminal “não impede a nomeação e posse de candidato aprovado em concurso público”.
“O que a Constituição Federal estabelece é a suspensão do direito de votar e de ser votado, e não do direito a trabalhar”, assinalou em seu voto o ministro Alexandre de Moraes.
Segundo Hugo Almeida, da comissão da OAB-SP, embora devam ser respeitados, o edital do concurso e os estatutos não podem “ficar acima da Constituição e da própria Lei de Execução Penal, que diz que uma das finalidades da pena é promover a reintegração do preso ao convívio social”.
“Então, mesmo que o edital traga uma regra dizendo que se o candidato tiver sido condenado, ele não pode entrar no cargo público, isso é inconstitucional, e aí nós teríamos condições de entrar na via judicial e reverter essa reprovação”, diz o advogado Renan Freitas, especialista em concurso público.
O professor Gustavo Badaró, da USP, destacou ainda que, dois anos após cumprir a pena, a pessoa condenada por um crime pode pedir a reabilitação criminal, se tiver emprego lícito e moradia, medida que garante o sigilo dos seus antecedentes.
“O Brasil não tem prisão perpétua. A pessoa é responsabilizada pelo fato específico que ela praticou, e o direito ao trabalho é o principal ponto da Lei de Execução Penal”, conclui o professor de direito Pablo Moitinho, da Universidade São Judas.