A Polícia Federal (PF) afirma, no relatório final da investigação sobre a tentativa de golpe orquestrada para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder que a recusa de comandantes do Exército e da Aeronáutica a “cederam a pressões golpistas” foi uma das principais razões para o plano não ter sido concretizado.
Segundo o documento, os comandantes do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, não deram o suporte para que o esquema fosse levado adiante.
Especialistas ouvidos pela BBC Brasil concordam que a falta de apoio no comando das Forças Armadas foi um fator central. Mas apontam outros que também podem ter contribuído para enfraquecer os planos do grupo que pretendia evitar a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente em janeiro de 2023.
1. Faltou apoio da sociedade civil e das elites
Para a pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um ponto desmobilizador do plano foi a falta de apoio massivo para uma ruptura democrática entre grandes atores da sociedade civil.
“O que garantiu que o golpe não ocorresse foram fatores como a mobilização da sociedade civil organizada ou a cobertura maciça da imprensa em favor da democracia”, diz a coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa (LESD).
Os manifestos em prol da democracia articulados por professores e juristas ligados à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) em agosto de 2022 foram cruciais para mostrar o vigor dessa mobilização, dizem especialistas.
A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, do Direito da USP, reuniu mais de 1 milhão de assinaturas, incluindo de ex-presidentes, senadores e outros políticos, acadêmicos aclamados, ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), bancários, empresários, artistas e diversas entidades.
O documento pedia respeito ao processo eleitoral, à separação dos poderes e ao Estado democrático de direito. A Fiesp também lançou seu próprio manifesto em prol da democracia, que recebeu apoio de entidades representativas do setor produtivo e do mercado financeiro.
2. Houve pressão internacional contra uma ruptura democrática
Também ao contrário do que aconteceu em 1964, quando o golpe militar contou com apoio dos Estados Unidos, em 2022, Washington não só deixou claro que acompanhava com atenção a realização das eleições brasileiras quanto que não concordaria nem se calaria diante de uma tentativa de subverter o resultado.
O governo do democrata Joe Biden via nos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral ecos do processo de questionamento da democracia visto nos Estados Unidos, que culminaram em um violento ataque ao Capitólio do país, em 6 de janeiro de 2021, enquanto a vitória de Biden era certificada pelo Congresso.
Na ocasião, Bolsonaro afirmou que o Brasil poderia “ter um problema pior que o dos Estados Unidos se não tiver voto impresso”. Aliado a Trump, Bolsonaro demorou a reconhecer a vitória do democrata e ecoou acusações infundadas do republicano de fraude eleitoral.
As advertências de autoridades americanas contra ataques bolsonaristas à democracia começaram privadamente, mais de um ano antes do pleito, mas se tornaram públicas conforme a eleição se aproximava.
Em maio de 2022, em entrevista à BBC News Brasil, a subsecretária do Departamento de Estado Victória Nuland disse pela primeira vez que os Estados Unidos esperavam ver “eleições livres e justas” no Brasil e reafirmou a confiança dos americanos no sistema eleitoral brasileiro, sob ataque de Bolsonaro.
Naquele mesmo mês, senadores democratas em sessão legislativa chamaram o mandatário brasileiro de “líder que ameaça a democracia”. Uma série de propostas para punir o Brasil surgiram no Congresso dos Estados Unidos – embora não tenham sido aprovadas, eram claros recados.
Em setembro, poucos dias antes da eleição, o Senado americano chegou a aprovar uma resolução que recomendava o rompimento de relação dos Estados Unidos com o Brasil caso o poder fosse usurpado no país. Em paralelo, a Casa Branca repetia esperar que a escolha do povo brasileiro fosse respeitada.
No dia da eleição, a Presidência americana executou uma operação de reconhecimento do vencedor em tempo recorde: em menos de uma hora do anúncio pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ainda na noite de domingo, o presidente Biden parabenizava Lula pela vitória nas urnas, em mais uma ação que visava minar qualquer condição de um golpe de Estado.
3. Atores institucionais e classe política entraram em ação
A própria ação dos atores institucionais e da classe política também pode ter agido para impedir que o plano de golpe fosse adiante, diz Claudio Couto, da FGV.
“Se a postura ativa do Judiciário por um lado gerava raiva entre os apoiadores do golpe e motivou ataques ao Supremo e ao ministro Alexandre Moraes em particular, por outro também sinalizou uma tolerância muito reduzida do próprio Judiciário e de outras instituições para qualquer tipo de aventura que viesse a acontecer”, diz o cientista político.
Segundo o analista, muitos temiam ainda que questionar o resultado do pleito presidencial poderia colocar dúvidas também sobre os resultados das eleições para o Senado, a Câmara e os governos federais, nas quais aliados de Bolsonaro e membros de partidos mais conservadores foram eleitos.
Mas para o cientista político Leonardo Avritzer, autor de Impasses da Democracia no Brasil e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o simples fato de uma trama golpista ter sido conduzida com o envolvimento de militares do alto escalão, ministros e outras figuras ligadas ao Executivo sinaliza uma necessidade de aprimoramento do funcionamento das instituições e da democracia brasileira.
“Foram diversos os episódios em que altos comandantes das Forças Armadas foram chamados para deliberar sobre um golpe de Estado — isso não pode ser considerado o funcionamento institucional normal”, afirma Avritzer.
4. Faltou apoio entre militares
Para os especialistas consultados pela BBC News Brasil, o fato de tanto Freire Gomes quanto Baptista Junior se recusarem a aderir ao plano golpista reflete um receio de parte do Alto Comando das Forças Armadas em aderir a um movimento que possivelmente não se sustentaria sem o suporte da sociedade civil, da classe política e de governos estrangeiros.
“O cenário todo que se formava criou constrangimentos que fizeram com que aqueles militares que estavam indecisos sobre aderir ou não ao golpe se recusassem a apoiar”, avalia Adriana Marques.
“O problema não era necessariamente concretizar o golpe, mas sustentar um regime autoritário em uma sociedade complexa como a brasileira, sem apoio de uma parcela importante da sociedade e sem respaldo internacional.”
Freire Gomes se manifestou dessa maneira em diversas ocasiões, ao reagir à pressão que sofria para aderir a um golpe de Estado. “Serão 20 dias de euforia para 20 anos de agonia”, disse o general, segundo as investigações.
Para Leonardo Avritzer, lideranças que fazem parte do Estado-Maior das Forças Armadas também se preocupavam com o efeito que um golpe teria na sua reputação, além de temerem as consequências de um regime sem um sistema de freios e contrapesos capaz de controlar o poder.
Na sua visão, parte do temor do alto escalão militar em relação ao ex-presidente pode estar relacionado ao próprio passado de Bolsonaro no Exército.
5. O golpe de Estado clássico saiu de moda
Outro ponto levantado pelo especialista é um certo esgotamento do modelo de golpe de Estado em que se planeja uma ruptura total e abrupta da ordem política.
“O golpe de Estado mais clássico está em decadência, ou seja, a ruptura completa com a ordem política já não é a mais comum”, diz.
O modelo descrito como clássico por Avritzer e outros cientistas políticos passa pelo que é visto como um esteriótipo envolvendo membros mais graduados das Forças Armadas derrubando o governo em um incidente curto, mas potencialmente violento.
Seria algo como o que aconteceu no Egito em 2013 ou na Tailândia em 2014. Mas segundo Leonardo Avritzer, esses dois países representam uma exceção atualmente.
O que especialistas veem como mais comum e possível hoje é um processo de ruptura da democracia mais paulatino, revestido de uma certa aparência de legitimidade, com controle das instituições (como tribunais e mídia), manipulação de eleições, uso de forças paramilitares, repressão a movimentos de oposição e outras formas de autoritarismo que não requerem uma tomada abrupta do poder.
“No Peru, houve uma tentativa, mas que foi mal sucedida. Na Bolívia também houve uma ruptura recentemente, mas que depois foi revertida”, diz Couto. “Ou seja, rupturas ainda podem acontecer.”
Segundo o relatório elaborado pela PF sobre a trama antidemocrática no Brasil, o fracasso do movimento no Peru teria sido um motivo para Bolsonaro não avançar em sua própria empreitada.