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“Todos nós somos criaturas profundamente cruéis e depravadas”, diz o ator Hugh Grant

Ator britânico volta em 'Herege' e se diz feliz por interpretar vilões. (Foto: Reprodução)

Hugh Grant precisou esperar os cabelos ficarem grisalhos e a pele do rosto ganhar rugas para interpretar os tipos estranhos que sempre quis. “É o que me oferecem agora, com a minha cara parecida com um traseiro que levou palmadas”, diz o ator inglês de 64 anos, com o característico humor depreciativo. “Eu não faço o papel de um sujeito bacana há uns dez anos. Só fiz aberrações, monstros, excêntricos e até assassinos”, comemora Grant, acostumado a desdenhar dos personagens de comédias românticas que povoam a sua filmografia.

“Voltei ao meu ponto de partida. Quando comecei a atuar, se alguém tivesse me perguntado no que eu era bom, eu teria dito: em interpretar esquisitões”, conta Grant, com mais de 70 trabalhos no currículo. “Desde que eu era garoto, era disso que eu gostava. As pessoas até pediam para eu parar, dizendo: ‘seja você mesmo’. Como eu não sei muito bem como fazer isso, fiquei muito mais feliz nos últimos anos, criando personagens distantes de mim.”

Mr. Reed, protagonista de “Herege”, filme de terror psicológico que acaba de estrear nos cinemas, é o último que destoa da sua vasta galeria de tipos charmosos, muitos deles propensos às observações mais espirituosas. Entre os mais celebrados estão os românticos de “Quatro Casamentos e um Funeral’’ (1994), “Razão e Sensibilidade’’ (1995) e “Um Lugar Chamado Notting Hill’’ (1999) e os cínicos de “O Diário de Bridget Jones’’ (2001), “Amor à Segunda Vista’’ (2002) e “Um Grande Garoto’’ (2002).

O novo protagonista até se aproveita, ainda que sutilmente, do magnetismo que Grant sempre exerceu, sobretudo sobre as mulheres, para atrair as suas vítimas em “Herege”. E isso é proposital, à medida que o personagem foi escrito pela dupla Scott Beck e Bryan Woods (também responsável pela direção) especialmente para o ator. É como se aquele charme tão familiar passasse aqui a ser usado para o mal, o que faz de Mr. Reed uma figura ainda mais perversa e resulta em uma das melhores performances da carreira do londrino.

Grant hipnotiza a plateia na pele do sessentão recluso que recebe duas jovens missionárias da Igreja mórmon, fingindo ter interesse em discutir a religião. As meninas nem imaginam que se trata de uma armadilha, onde jogos cruéis serão impostos ao longo da noite. Tudo para testar a fé das meninas e para o deleite do anfitrião, que propõe reflexões sobre profetas, redenção e a natureza das crenças provavelmente só para espantar o tédio e se comportar muito mal.

“Sinceramente, não vejo como o mesmo charme de personagens anteriores. Esse é bem diferente”, diz Grant, em entrevista virtual a um grupo de jornalistas, do qual o Valor participou. “Mr. Reed é um tipo de besta que se acha divertido e carismático, apesar de todo mundo perceber rapidamente que há algo de errado com ele. Talvez eu tenha lançado mão de um charme mais genuíno e caloroso uma única vez. No início do filme, quando abri a porta. Isso porque nós simplesmente não poderíamos deixar a plateia pensando que as garotas eram idiotas por entrarem naquela casa.”

As missionárias Barnes (Sophie Thatcher) e Paxton (Chloe East) até tomam as mínimas precauções antes de atravessarem a porta daquela residência, em área isolada de Vancouver, Canadá. Ou pelo menos acham que tomam. As jovens dizem que só podem entrar caso exista alguma mulher na casa, o que Mr. Reed confirma imediatamente. “Minha esposa está preparando uma torta de mirtilos”, diz ele, pedindo que a dupla sinta o aroma no ar, vindo da cozinha.

Assim que a porta da frente é fechada, no entanto, o anfitrião mostra a sua verdadeira face. Mr. Reed começa fazendo comentários desagradáveis sobre a religião que as meninas pregam, passando a questioná-las — de um modo tão eloquente e inteligente que o espectador acaba concordando com o protagonista. Mas logo depois ele inicia os jogos sinistros, perdendo a razão. A dupla até tenta fugir, percebendo logo que a porta está trancada e, para piorar, não há sinal para pedir ajuda pelo celular.

A maneira como Mr. Reed confunde a cabeça das garotas, com as referências religiosas, é diabólica. “O fato de o personagem sentir tanto prazer em desorientar e aterrorizar as meninas é algo deliciosamente horrível. Eu até pensei em algumas teorias para explicar por que ele faz isso”, afirma Grant, revelando que o anfitrião provavelmente tem um histórico infeliz com o sexo oposto. “Como Mr. Reed nunca se deu bem com as mulheres, ele faz isso buscando vingança ou compensação, à medida que as desestabiliza, perturba e escraviza.”

Em sua preparação para o papel, Grant escreveu uma biografia de cerca de cem páginas sobre Mr. Reed. “Desde o meu início de carreira, sempre me preocupei muito, fazendo uma análise sobre as motivações, os pensamentos e as emoções dos personagens. Até mesmo para os mocinhos de comédias românticas, onde parecia que eu não fiz trabalho algum”, conta Grant, premiado com um Bafta (o Oscar inglês) de melhor ator e um Globo de Ouro de ator em comédia por “Quatro Casamentos e um Funeral’’.

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