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Três psicanalistas falam do grande impacto da tragédia do RS na mente e vida dos brasileiros

(Foto: Defesa Civil/Divulgação)

Nos últimos dias, duas perguntas foram seguidamente formuladas por quem vive o maior desastre da história do Rio Grande do Sul: “quem é que vai pagar por isso?” e “como iremos sair dessa?”. A busca por responsabilização, a popularização do termo ansiedade climática e as incertezas sobre a reconstrução do que foi varrido pela força da água eram acompanhadas pelo reconhecimento da mobilização nacional e o agradecimento ao esforço de solidariedade que ajudou a alimentar, aquecer e cuidar mais de 580 mil pessoas desalojadas de suas casas.

Como o poder público e a sociedade civil responderão a essas e outras questões, apontam Vera Iaconelli, Christian Dunker e Maria Homem, será central para os gaúchos enfrentarem o trauma causado pela perda de familiares, de amigos, das casas onde viviam, de boa parte de suas memórias.

Vera Iaconelli, mestre e doutora pela USP

“Salvar as pessoas e pensar na responsabilização dos culpados são parte de uma mesma cadeia de ações, não isoladas. Podem e devem acontecer ao mesmo tempo. Na última quinta-feira, um vereador de Caxias do Sul sugeriu cortar árvores para evitar deslizamentos. Segue-se falando sem noção e sem receio de responsabilização.

O reconhecimento da perda é busca fundamental para a vivência do luto, para se seguir sem ficar melancólico, mesmo sabendo que certas perdas são irreparáveis. A necessária esperança embutida na solidariedade, na força dos comprometidos em reconstruir suas vidas, suas casas, precisa ser acompanhada por reflexão coletiva sobre as leis que passaram e as que não andaram no Congresso. Sobre o que faremos da Amazônia e do Cerrado.

Contar e lembrar minimiza a perda material. Fotos, móveis, documentos transmitidos de uma geração a outra. Será importante cultivar a história oral, possibilidade de o luto criar outras memórias. Não se tentar fazer um simulacro do que se perdeu, mas incluir a perda como parte da história de um povo. É diferente de uma casa que pegou fogo e ajudamos a vizinha a se reerguer. Após a ajuda material, as vítimas precisarão de tratamento psíquico e as instituições de psicanálise e psicologia estão se organizando para ajudá-los. Para nos ajudar.”

Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP

“Em ‘Lutos finitos e infinitos’ e ‘Lacan e a democracia’ escrevi sobre culpa, responsabilidade e implicação. A culpa é importante por mobilizar uma reação, se distanciar da apatia. Para a travessia do trauma, é bom que se sinta ódio, é melhor reagir do que ficar apático, com olhar distante, tão impactado pelo horror que não se consegue mais estar presente. E vivemos hoje no Brasil um cenário prolongado de anomia, um estado de ausência de regras que intensifica a sensação de pânico, de abandono.

É preciso então pensar em responsabilização e implicação. Na ideia de que um pacto foi quebrado, e que podemos reconstruí-lo. Não apenas punir de modo subjetivo, mas nos encarar e pensar com coragem sobre qual foi minha parte nesse latifúndio. Pressionei o político? Votei certo? Achei que colapso ambiental era uma falácia? Li ou espalhei fake news sobre o clima? Dei de ombros ao reerguer minha casa em local precário demais?

Cada um de nós, refugiados ambientais planetários, precisaremos fazer esta análise para estabelecer um novo pacto de vivência. Uma parte do que aconteceu no Rio Grande cabe à natureza, mas outra cabe a nós todos. Se não chegarmos a esse segundo tempo, o trauma tende a se estabelecer mais facilmente.”

Maria Homem, psicanalista e professora

“Vivenciamos agora um movimento de muita dor, de perda, e singular ao se perceber ao mesmo tempo impotente e responsável diante da catástrofe. Por mais paradoxal que seja, precisamos reconhecer que somos ambas as coisas. O trauma será trabalhado ao ampliarmos a consciência sobre nossos lugares, limites e responsabilidades. Precisaremos ao mesmo tempo transformar nossas ações, insuficientes, e pressionar os outros. Essa pode ser uma oportunidade transformadora. Aquele momento em que você está educando um filho, e ele pode sofrer, espernear, mas só comerá o que gosta se abandonar a chupeta.

Vive-se situação sem volta. Precisamos encarar que chegamos a um ponto sem saída. Que estamos no mesmo barco. Que a lógica tribal não serve, provou-se incapaz neste momento.

O único aspecto positivo desse horror foi que agimos juntos, num esforço impressionante de solidariedade. E a saída está nele.” As informações são do jornal O Globo.

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