Com uma frequência menos que desejável, volta e meia o Brasil é levado a discutir o tema golpe de Estado. Tivemos, desde 1822, pelo menos nove golpes de Estado com a subversão da ordem institucional, numa média de um golpe a cada 22 anos, fato que justifica cautela especial com esse assunto. O último gatilho para a exacerbação da questão foi o STF ter tornado público um vídeo datado de 05.07.2022, no qual as mais altas autoridades da República debatiam qual o tempo e o modo adequado para “virar a mesa”, numa referência à possível perda das eleições presidenciais que se avizinhavam. Não sem motivo, animam-se aqueles que enxergaram, no aludido evento, elementos para caracterizar uma intenção manifesta de golpe de Estado. A reunião foi, acima de qualquer dúvida, por todas as suas circunstâncias e atores envolvidos, um repositório riquíssimo sobre o qual já se debruçam juristas, estudiosos, jornalistas, historiadores e curiosos, todos buscando decifrar a genealogia do que ali foi tratado, inclusive sob seus aspectos escatológicos, dado o gosto pela linguagem obscena que caracterizou algumas das falas, traço que também pode ser revelador sob uma análise de caráter psicanalítico.
Gabriel Naudé, em 1639, foi quem originalmente teorizou o conceito golpe de Estado. Determinado governante poderia, em defesa do interesse público, violar as leis e regras estabelecidas. Contudo, somente após a Revolução Francesa, em 1789, o termo se popularizou, sendo hoje tido como a forma de tomada de poder por vias excepcionais, com apoio militar ou de forças de segurança. Afasta-se, assim, possível confusão com formas associadas a revoluções, motins, rebeliões ou guerra civil. Dessa forma, o golpe de Estado adquire feições únicas, já que é executado por agentes do Estado, usando meios do Estado, o que facilita a sua delimitação diante de outros modos insurrecionais.
Há, no caso brasileiro de agora, em relação ao engendramento do suposto golpe, dúvidas sobre se houve descuido, inocência ou maldade, formas como Shakespeare já tratava o erro humano e que perduram no tempo. Os fatos, todos trazidos à luz, com imagens e vozes dos próprios protagonistas, não deixam de ser chocantes, ao mesmo tempo em que emergem como que a crônica de uma tragédia anunciada. O “modus operandi”, de fato, descortina também uma série de suposições que vão além da materialidade de eventual delito, já que, como Foucault observou, “as pessoas sabem o que fazem; frequentemente sabem por que fazem o que fazem; mas o que elas não sabem é o resultado do que fazem”.
Para além do evento em si, reprovável em todos os sentidos, emerge a necessidade de haver reforço aos pressupostos democráticos. Essa certa indiferença das classes populares acerca da importância da democracia, derivada em larga medida por imensas manchas de subcidadania em nosso meio, contribui com os apelos autoritários que coabitam conosco. Isso torna o alerta de Thomas Jefferson ainda mais crítico: “Se uma nação espera ser ignorante e livre, e ainda em uma condição de civilização, então ela espera algo que nunca aconteceu e jamais acontecerá”.
Menos mal que, além de termos instituições que vêm se mostrando mais hígidas e diligentes do que se imaginava, as intenções explicitadas no lamentável 05.07.2022, revelaram-se pouco imaginativas e de uma elementar descontextualização para com a realidade, na mesma medida em que foram ousadas e sem escrúpulos. Somos, ainda, uma democracia frágil e sujeita aos riscos que acometem países com esse mesmo perfil. É preciso entender que regimes democráticos não são regimes que existem e perduram porque as instituições e seus atores os amem abstratamente. Há razões objetivas de sobra para se defender a democracia e talvez a melhor delas seja que viver sob um estado democrático de direito ainda é o melhor modo de cada um ter espaço para expressar seu sentido de humanidade. Apelos totalitários podem e devem ser contidos na estrita observância da Lei. É isso, e não mais do que isso, que se espera.