A Ucrânia afirma que mais de 16.200 crianças ucranianas foram levadas para a Rússia desde a invasão da Crimeia, em 2014. Uma política de deportações que se acelerou com a invasão do país em 24 de fevereiro de 2022. A Rússia chegou a adotar uma lei para facilitar a entrega de passaportes russos para órfãos vindos de territórios ucranianos ocupados, simplificando a via para sua adoção. ONGs e relatórios denunciam uma tentativa de “limpeza étnica” da Rússia.
Em Kherson, onde a população continua a viver sob bombardeios constantes, mesmo após a retirada das tropas russas, moradores utilizaram várias estratégias para salvar suas crianças, mas tiveram que assistir impotentes muitos casos de deportação.
Em outubro, os russos deixaram a cidade, após uma contraofensiva do Exército ucraniano. Mas antes, eles capturaram e deportaram as crianças que estavam em orfanatos. Na instituição dirigida por Olena Kornienko, 48 crianças, de entre 0 a 5 anos, foram retiradas. Em entrevista ao canal France 24 (emissora do mesmo grupo que a RFI), ela afirma que foi demitida e uma empregada pró-Rússia foi contratada em seu lugar.
“Eles me propuseram diversas vezes para trabalhar para eles, mas eu recusei. Eles entenderam que eu impediria seus planos, então me demitiram”, denuncia.
Em um vídeo postado no YouTube em 21 de outubro de 2022, o prefeito adjunto de Kherson, Kirill Stremousov, nomeado pelos russos para dirigir a cidade, descreve a retirada dos menores como uma operação de salvamento.
As crianças da creche de Olena foram vistas, logo depois, em uma foto postada no perfil Telegram de Maria Lvova-Belova, comissária para os direitos das crianças do presidente russo, responsável pela deportação de crianças ucranianas. Nas imagens ela aparece mostrando os menores com suas novas famílias russas.
Respiradores
Stanislav Boumbu e Olga Pilarska, médicos que trabalham em um hospital para crianças de Kherson, contam como, durante a ocupação, esconderam 10 órfãos dos russos no centro de saúde.
De acordo com Olga, todas as manhãs, após o anúncio da evacuação das tropas de Moscou, o comando russo exigia do hospital listas das crianças que poderiam ser retiradas. Os médicos prepararam documentos falsos e colocaram aparelhos de assistência respiratória ao lado das camas para fingir que os pacientes não podiam ser transportados.
“Claro que tínhamos medo. Era um grande risco para todo o pessoal e todo o hospital. Mas cada um, dentro de suas possibilidades, defende a Ucrânia. Era nossa maneira de defendê-la”, disse Boumbu à France 24.
“Um país normal não vem até você com tanques. E para todos os países, o mais importante são as crianças, então claro, temos que fazer tudo para defendê-los”, diz Olga.
Crimeia
Volodymyr Saihak, diretor de um orfanato e instituição para crianças sob tutela, também escondeu menores em sua casa e de seus empregados durante a ocupação russa. Ele mostra as fotos das 52 crianças que tinha em sua instituição.
“A guerra na Ucrânia já dura 8 anos, e nós vimos o que aconteceu em Donetsk e Lugansk, como levaram as crianças de lá”, diz.
“Conhecemos também a história da União Soviética, a da deportação dos tártaros da Crimeia e dos ucranianos do oeste na Sibéria. Por isso sabemos que poderíamos ter o mesmo destino”, diz Sihak, se referindo às operações de limpeza étnica que aconteceram durante a ditadura soviética.
Em junho de 2022, os russos foram à casa de Volodymyr pela primeira vez. “Eles perguntavam onde estavam as crianças”, conta. Ele mentiu, e os soldados acreditaram. Mas um mês depois, eles levaram mais órfãos, que tinham sido retirados de um abrigo na linha de frente da guerra.
“Eles nos trouxeram as crianças a bordo de veículos militares. Eles estavam assustados, pensavam que seriam levados para a Rússia. Ficaram aqui durante um mês, mas em 19 de outubro, quando os russos se retiraram de Kherson, eles levaram as crianças. Não tivemos escolha. Eu disse, ‘por favor, deixem-os aqui, não são soldados, são apenas crianças'”, conta.
“Eles nos deram duas horas e disseram que se não os entregássemos, eles voltariam com mais soldados”, conta.
Com a ajuda de ONGs internacionais, algumas destas crianças puderam ser retiradas da Rússia. De acordo com a Ucrânia, apenas 307 crianças foram devolvidas, para mais de 16.200 deportadas.
Peça central
A comissária de Vladimir Putin para os direitos da criança, Maria Lvova-Belova, é uma agente central do dispositivo russo implementado para deportar crianças ucranianas para adoção.
Em seu canal Telegram e na televisão russa, ela mantém um discurso de “salvadora” das crianças. No entanto, ela deporta centenas delas, obrigando-as a deixar os territórios anexados da Ucrânia para se estabelecerem em um país estranho: a Rússia.
Fotografada a bordo de aviões, trens ou rodoviárias, ela diz com orgulho, nas redes sociais e na mídia estatal, que graças a ela, centenas – até milhares, é difícil precisar – de crianças ucranianas são “protegidas” pela “grande Rússia”. Ela não fala de “deportação”, mas sim de “resgate” e prefere “tutela” à “adoção”.
Provenientes de orfanatos, hospitais, centros sociais ou lares de acolhimento em regiões anexadas, órfãs ou separadas das suas famílias devido aos combates, estas crianças são oferecidas a famílias russas, mediante pagamento do Estado.
Totalmente contrária ao direito internacional e à Convenção dos Direitos da Criança, a prática foi denunciada ao Tribunal Penal Internacional em dezembro pela associação francesa “Pela Ucrânia, pela sua liberdade e pela nossa”. A ONG Anistia Internacional também apontou para um “crime de guerra” e um possível “crime contra a humanidade”, num relatório publicado em novembro passado.
Mas, longe de ser escondida, a política de deportação de crianças alimenta a propaganda russa e acompanha a “desucranização” desejada por Vladimir Putin.
A Rússia afirma ter recebido cinco milhões de refugiados de regiões anexadas, enquanto a Ucrânia declarou no início de dezembro que 13.000 crianças foram deportadas para a Rússia, embora seja difícil avaliar seu número real.