Objeto de controvérsia jurídica, o instrumento de delação premiada completa dez anos novamente sob holofotes com o acordo firmado entre a Polícia Federal e o tenente-coronel Mauro Cid, que pode ajudar a esclarecer acusações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, e os avanços nas investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco, possíveis a partir da colaboração de um dos executores. Ao mesmo tempo, a anulação de provas do termo de leniência da Odebrecht, há dez dias, retomou o debate em torno da Operação Lava-Jato — operação em que o mecanismo atingiu o ápice em utilização, mas também em anulações e críticas.
Juristas ouvidos pela reportagem destacaram o papel da ferramenta em diferentes frentes de investigações ao longo da década e apontaram a necessidade de aprimoramento das regras para dar efetividade às colaborações, e, em consequência, avançar em condenações com o resguardo das garantias jurídicas.
A delação premiada está prevista na Lei das Organizações Criminosas, criada no calor do apelo das ruas nas Jornadas de Junho de 2013, quando o combate à corrupção se tornou bandeira uníssona. Sancionada pela então presidente Dilma Rousseff, a legislação atingiria em cheio justamente o núcleo do poder político e econômico, levando dois ex-presidentes à prisão: Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2018, e Michel Temer (MDB), em 2019, foram presos em ações que tiveram depoimentos de delatores como peças decisivas nas investigações. As ações contra ambos, porém, foram anuladas por irregularidades processuais.
Marco do uso da colaboração, a Lava-Jato firmou 399 acordos de delação entre 2014 e 2021, segundo dados do Ministério Público Federal. Só o da Odebrecht, que foi apelidada de “a delação do fim do mundo”, em 2017, envolveu depoimentos de 78 executivos, incluindo os donos da construtora Emílio e Marcelo Odebrecht. No último dia 6, o ministro Dias Toffoli anulou provas do acordo de leniência da empresa por desrespeito ao “devido processo legal”.
Hoje senador, o ex-juiz Sergio Moro (União-PR) defende a operação e diz que as críticas às colaborações são “mal fundamentadas”. Ele ressalta que apenas para a Petrobras foram recuperados R$ 6 bilhões como fruto das investigações.
“A Lava-Jato teve repercussões internacionais e contribuiu, inclusive, para a descoberta de crimes de corrupção que ocorreram em outros países, como Peru, Colômbia, México, Panamá… Enfim, foi um instrumento utilizado com muito êxito”, disse.
Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito penal da USP, ressalta que a lei de 2013 teve importância ao detalhar melhor o uso da colaboração premiada, mas que deixou brechas, como prisões preventivas ou busca e apreensão deflagradas só com base em depoimento de delatores. Isso viria a ser corrigido parcialmente em 2019, no bojo do “pacote anticrime”, que promoveu uma reforma na legislação.
“Em 2019 se estabeleceram novos limites. Continuou-se dando importância para delação como instrumento de investigação, mas foi proibido que qualquer medida de restrição de direitos, seja patrimonial ou de liberdade, fosse tomada só com base na palavra do colaborador.”
Exemplos estrangeiros
Os juristas apontam que o modelo brasileiro foi uma adaptação dos sistemas dos Estados Unidos e da Itália, que possuem organizações jurídicas distintas da nossa. No país europeu, a experiência da Operação Mãos Limpas, que atingiu a elite política do país, também promoveu mudanças nas regras de delações ao longo dos anos. Já nos EUA, ressalta Walter Barbosa Bittar, professor de Direito da PUC-PR e autor do livro “Delação premiada”, o Ministério Público possui mecanismos de prestação de contas e de controle, o que garante que agentes públicos sejam responsabilizados por descumprirem normas em acordos, o que não ocorre no Brasil.
Bittar aponta ainda que a legislação brasileira acabou não abarcando as possibilidades de delação, o que levou, por exemplo, à falta de tipificação sobre em quais crimes podem ser autorizados acordos. Ele cita como exemplo a Operação Publicano, no Paraná, que investigou um esquema de propina entre auditores fiscais. Um dos réus que virou delator era também autor de crimes sexuais contra adolescentes. Mesmo assim, ele conseguiu a liberdade ao fechar acordo de colaboração.
“É um instrumento que deveria ser de exceção e só em determinadas tipificações penais”, diz Bittar.
Outro ponto de tensão nos últimos anos envolvendo o tema da delação premiada é a disputa entre Ministério Público e Polícia Federal sobre o poder de firmar os acordos. Apesar de entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018 de que a PF pode conduzir delações, recentemente o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou que a PGR “não aceita delações conduzidas pela Polícia Federal” ao criticar o acordo de Mauro Cid, solto no último dia 9 após homologação da colaboração pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. O tenente-coronel fechou a colaboração durante o período em que esteve preso no batalhão de Polícia do Exército em Brasília, outro ponto sensível de críticas nos últimos anos.
Em 2021, o tema voltou a ser debatido no caso da delação do ex-governador Sérgio Cabral.