Há cerca de três anos, a professora de francês Charlotte Cohen Tenoudji, 27 anos, resolveu descobrir sua verdadeira história. Criada na França até os 25 anos, ela empreendeu uma busca por seus pais biológicos. Charlotte não esperava, mas ajudaria a revelar uma rede de tráfico de crianças instalada no orfanato Lar da Criança Menino Jesus, em São Paulo. Nos anos 1980, ela e mais três crianças foram vendidas para famílias estrangeiras em processos de adoção ilegais. Como os crimes ocorreram há mais de vinte anos e só vieram à tona após o depoimento de Charlotte, o crime prescreveu, e os donos do orfanato, Guiomar e Franco Morselli, não podem mais ser presos.
O casal Morselli abrigava no orfanato mulheres grávidas, solteiras e que não queriam ter os filhos. A elas, eram fornecidos cuidados, abrigo e um destino para os bebês indesejados que estavam prestes a nascer. Quando as mulheres davam à luz, entregavam a criança à Guiomar, que cuidava do processo de adoção. Ela e uma funcionária do orfanato levavam a criança para ser registrada. “Normalmente, ela pegava dois bebês nascidos em períodos próximos e diziam no cartório que eram gêmeos. A funcionária registrava as crianças como filhos dessa funcionária”, explica Jefferson Aparecido Dias, procurador regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo.
Enquanto isso, Christiane, uma amiga de Guiomar que morava na França, era a responsável por encontrar casais ou famílias que tinham interesse em adotar crianças. Era ela quem intermediava o processo de adoção entre o orfanato e a família estrangeira, e também buscava as crianças no aeroporto – elas viajavam com a funcionária e “suposta mãe”. O processo de adoção ocorria sem a presença de assistentes sociais, sem tramitações legais e sem fila de espera.
Entregue a um casal idoso, Charlotte sofreu torturas psicológicas, conviveu com crises de bipolaridade da mãe e presenciou cenas de descontrole do pai, que era alcoólatra. Além disso, ficava isolada do restante da família – ela conviveu apenas com os pais adotivos durante toda a vida. “Sempre que eu tocava no assunto da adoção, para entender o meu passado, minha mãe gritava e se descontrolava… Era impossível”, diz Charlotte.
Charlotte sempre soube que era adotada, mas não conhecia detalhes sobre a ilegalidade do processo. Aos 16 anos, ela encontrou documentos da adoção e pediu que a mãe adotiva lhe contasse como tudo aconteceu. A mãe adotiva falou pela primeira vez, sem dar detalhes. Em 2012, Charlotte voltou para o Brasil na tentativa de estabelecer um contato com os antigos donos do orfanato. Mas Guiomar e Franco Morselli afirmaram que não tinham conhecimento sobre o caso dela. Ela então decidiu acionar a Justiça.
Até agora, só o caso de Charlotte foi comprovado. Ela forneceu todos os documentos de adoção que encontrou na casa dos pais, o que facilitou o trabalho dos investigadores. De acordo com o procurador, só pela venda de Charlotte, o casal Morselli recebeu o equivalente a 100.000 reais. Os réus negaram o crime e afirmaram não ter conhecimento do caso. A mulher que registrou Charlotte no Brasil, Maria das Dores, disse que só registrou a menina por pressão de Guiomar, que fazia ameaças às funcionárias que negavam participar do esquema.
Charlotte criou uma página no Facebook chamada “Em busca de minha mãe no Brasil”. Ela ficou em evidência depois de dar um depoimento no fim de um capítulo da novela Salve Jorge, da Rede Globo, em 2012. Apesar da mobilização, Charlotte ainda não atingiu seu objetivo: encontrar o paradeiro da mãe biológica.
Na última semana, a Polícia Federal realizou uma busca e apreensão no endereço do antigo orfanato, atualmente uma creche. Segundo o procurador, os resultados dessa busca serão decisivos para que as investigações prossigam e o inquérito seja concluído.
A ação do Ministério Público tem o objetivo de indenizar essas pessoas por danos morais. “No momento, os réus não podem ser presos porque os crimes foram cometidos há mais de vinte anos. No entanto, se os investigadores encontrarem provas de outros processos ilegais que ocorreram de vinte anos para cá, a situação muda, e a possibilidade de prisão passa a existir”, afirma Dias.