Ozempic, Viagra, aspirina, AZT, minoxidil, penicilina e anestesia: à primeira vista, pode ser difícil identificar o que todos esses nomes têm em comum, além de serem medicamentos amplamente conhecidos. Mas eles compartilham uma história que, em ao menos um ponto, é similar – foram desenvolvidos inicialmente para um determinado objetivo, mas se popularizaram devido a uma eficácia inesperada para um outro problema de saúde.
“Isso acontece porque o medicamento não atua apenas num local específico, ele circula no organismo. Então existe a chance de ter outras reações além daquela esperada, que podem ser positivas ou negativas. Normalmente são negativas, que são os famosos efeitos adversos. Mas às vezes esse efeito secundário pode ser positivo e inesperado. Quando você desenvolve uma molécula que é um antidiabético, mas ela mostra um efeito cardioprotetor, por exemplo”, diz Gustavo Mendes, diretor de Assuntos Regulatórios e Qualidade e Ensaios Clínicos da Fundação Butantan e membro do GT de Indústria do Conselho Federal de Farmácia (CFF).
A professora de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Christianne Bretas explica que, quando o efeito é positivo, isso pode levar ao movimento chamado de reposicionamento do fármaco. Resumidamente, é tornar oficial a indicação do remédio para o efeito secundário inesperado. Algo bem-vindo, desde que feito com as devidas evidências científicas.
“Nós temos vários casos de sucesso. Mas não podemos dizer o mesmo, por outro lado, sobre a cloroquina e a ivermectina para a Covid. Então é algo que é possível, é interessante, mas que requer que a molécula volte para estudos para ser feito com segurança e evidências científicas. O bom é que você já não gasta mais tanto tempo e dinheiro do que gastaria com uma molécula nova”, diz ela, que é líder do Núcleo de Pesquisa em Plasticidade Epidemiologia e Estudos in Silico (NUPPEESI) da UFF e divulgadora científica no Science Rocks UFF.
O exemplo mais recente de um reposicionamento ocorreu com os análogos de GLP-1, classe de medicamentos à qual pertence a semaglutida, do Ozempic e do Wegovy, assim como a tirzepatida, do Mounjaro. Os fármacos do tipo começaram a ser pesquisados para diabetes tipo 2 quando, ainda nos anos 80, cientistas descobriram que o hormônio GLP-1 atua nos níveis de açúcar do sangue.
O primeiro a sair do papel foi a liraglutida, criada pelo laboratório Novo Nordisk e presente no Victoza – remédio para diabetes aprovado nos Estados Unidos em 2010. Porém, quando ainda estava em desenvolvimento, nos anos 90, experimentos com camundongos já indicavam um efeito secundário surpreendente da molécula: ela inibia o apetite dos animais.
A comunidade científica ainda era cética à época, mas, com o aval do Victoza para diabetes, a farmacêutica passou a conduzir testes clínicos para avaliar a perda de peso. O efeito se mostrou verdadeiro, e os resultados levaram ao reposicionamento da liraglutida com o Saxenda, aprovado nos EUA em 2014, que continha uma dose superior do medicamento e indicação oficial para obesidade.
Hoje, os análogos do GLP-1, que simulam o hormônio de mesmo nome (a liraglutida, a semaglutida e a tirzepatida) são conhecidos principalmente por terem inaugurado uma nova era nos medicamentos para a obesidade com o potencial de emagrecimento nunca visto antes.
Além dos análogos do GLP-1, há outros exemplos emblemáticos de medicamentos que também causaram surpresa entre os cientistas ao se revelarem eficazes para um problema secundário de saúde.
“A aspirina foi desenvolvida inicialmente como um analgésico antitérmico em 1870. Só em 1950, depois de muitos anos, é que se foi observado o efeito anticoagulante, de um antiagregante plaquetário. Hoje muitas pessoas, especialmente as com problemas cardiovasculares, utilizam ele de forma contínua. Mas foi apenas durante a observação do medicamento na população que encontraram esse potencial”, conta Ismael Rosa, mestre em Ciências Farmacêuticas e diretor Clínico Farmacêutico do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ).
Outro caso citado é o da sildenafila, substância presente no Viagra. O medicamento é utilizado para quadros de disfunção erétil, e gerou até mesmo diferentes derivados, como a tadalafila, do Cialis. Mas não foi esse o objetivo inicial dos cientistas que estudavam a molécula.
“Ela foi desenvolvida lá em 1993, quando cientistas trabalhavam num medicamento para dilatar as artérias do coração e diminuir a dor no peito, que chamamos de angina. No momento da pesquisa, porém, eles observaram efeitos que não eram os desejados. Os voluntários relataram uma reação estranha, mas não necessariamente ruim, que era justamente a melhora da ereção”, diz Rosa.
O farmacêutico também lembra um outro caso de reposicionamento muito importante na história da medicina: a zidovudina ou AZT. O comprimido foi desenvolvido ainda nos anos 1960 para tratamento de um tipo específico de leucemia. Porém, mais de 10 anos depois, quando surgiu a epidemia do HIV, cientistas descobriram que o composto era um antiviral altamente eficaz.
O AZT foi um dos primeiros a serem aprovados para pessoas que vivem com HIV no mundo, e no Brasil, e é celebrado por pesquisadores como o fármaco que de fato conseguiu mudar o rumo da infecção, levando indivíduos a conseguirem controlar a carga viral do HIV e impedir a evolução para a síndrome da imunodeficiência adquirida, a Aids. As informações são do jornal O Globo.