Sexta-feira, 29 de novembro de 2024
Por Ali Klemt | 16 de junho de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Em que momento começa a vida?
Para mim, inicia a partir do momento da concepção. Por isso, sou contra o aborto. Contudo, compreendo quem entenda que surja a partir de quando bate o coração ou, no máximo, quando o feto passa a ser viável – isto é, potencialmente, pode sobreviver fora do útero – como na foto que você vê neste post de um bebê de 22 semanas.
Essa pergunta fundamental voltou à pauta essa semana – e o Brasil se pegou, mais uma vez discutindo o aborto. Não é por acaso que o tema gera comoção: é um assunto que põe em confronto direitos fundamentais, como o direito à vida (do feto) ao da liberdade (da mãe). Adicione a essa equação os elementos de abuso físico e emocional (estupro) e injustiça (impunidade) e nós temos uma enorme bomba jogada sobre a sociedade – e não adianta ignorar, precisamos decidir o que fazer com ela.
Sou contra o aborto, salvo nas hipóteses em que é permitido por lei (risco de vida da mãe, bebê anencéfalo ou estupro). Então, pela lógica, diante de uma gestação decorrente do crime de estupro, eu concordaria com o término da gravidez e pronto. Certo?
Não sei. Eu não consigo parar de pensar sobre isso desde que ressurgiu a matéria no Congresso Nacional. A questão é muito, muito complexa – mas ganhou contornos políticos, o que acaba tornando o debate ponderado e técnico ainda mais difícil.
Acompanhem-me no raciocínio. Nesta semana, foi apresentado, na Câmara dos Deputados, o PL 1904/24 para alterar o artigo que estabelece o aborto como crime a fim de que, a partir da 22a semana de gestação, passe a ser equiparado ao homicídio simples – e, sim, também tira a excludente mesmo quando a gestação decorrer do crime de estupro.
A justificativa do Projeto de Lei, resumidamente, é no sentido do direito à vida. Destaca que a orientação da OMS é de que o conceito de aborto só engloba o fato ocorrido até a 22a semana – após o que se considera que há viabilidade fetal. Em contrapartida, segundo entendimento do Ministério Público de Santa Catarina, em junho de 2023, “quando há viabilidade fetal, orienta-se que seja realizado o procedimento de indução de assistolia fetal previamente à indução do parto (…)”.
E aí é que temos uma questão grave: a assistolia fetal consiste em realizar uma injeção de cloreto de potássio dentro do coração do feto para que pare de bater. O procedimento já era proibido pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária e foi, então, proibido pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução 2.378/24) sob o argumento de ser “profundamente antiético e perigoso em termos profissionais”. Porém… a resolução foi derrubada, no início do mês, pelo STF, em decisão individual – adivinhem? – do Ministro Alexandre de Moraes. Aí começou a confusão.
Lembrem-se que o PL foi apresentado pelo deputado Sóstenes Carvalho, do PL, e assinado por outros 32 deputados da oposição. A partir de então, virou guerra política de direita contra esquerda – o que é, exatamente, o que NÃO pode acontecer diante de uma questão tão sensível.
Sinceramente, eu tenho imensa dificuldade em aceitar o aborto desde que me tornei mãe. Ouvir o coração do bebê bater e não achar que isso é VIDA é algo incompreensível para mim. Por outro lado, sou mulher e sequer imagino a dor emocional dilacerante que deve sentir a vítima de um estupro – que dirá descobrir que carrega o fruto desse crime dentro de si.
A maternidade é sagrada. O processo em si é um milagre da natureza e provoca profundas consequências não apenas em nosso corpo, mas em nossa alma. Mudamos completamente e passamos a dedicar a nossa vida ao ser que geramos. Logo, deve ser muito, muito difícil enfrentar uma situação extrema como a decorrente de um estupro. Ou seja, o aborto precisa acontecer o quanto antes – e, sim, definitivamente antes da 22a semana.
Sigo contra o PL 1904/24 porque não acho que ele vá resolver o verdadeiro problema: o número ainda expressivo de crimes de estupro no Brasil. Como se não bastasse, faltou uma estratégia de comunicação explicativa, e a ideia parece dissociada da atual realidade, em que tantas meninas são violentadas dentro de casa e acabam descobrindo sobre a gravidez tardiamente – ou que são vítimas da burocracia. Pior! Desconsideraram que a pena para o estuprador (de até dez anos) ficaria muito menor que a da própria vitima do estupro que comete o aborto após a 22a semana (até vinte anos de reclusão). Esse “detalhe” deturpa a iniciativa de proteção à vida e criminaliza a vítima de forma mais grave que a de quem, efetivamente, deveria ser punido. Que injustiça poderia ser maior?
Mas tem o bebê. E eu não consigo abrir mão da vida do bebê. Por mais cruel que seja a forma como veio ao mundo, será que não se deveria permitir que essa alma tente a sorte, realizando-se um parto? Se já é possível, por quê não?
Eu não tenho a resposta, porque defendo a vida, porém respeito o direito de não viver como vítima de um crime – mas, principalmente, porque acredito que ainda não temos maturidade, como sociedade, de culpar a mulher que toma a decisão de abortar o fruto de um crime tão primitivo e repulsivo.
O que é certo, até aqui, é que a violência sexual segue sendo tão real no nosso país, que sequer a tratamos como excepcionalidade. Ela está presente nas entranhas das nossas comunidades, incrustada em nossa sociedade, sendo sombra no futuro de tantas e tantas mulheres nesse Brasil. E é contra esse ato cruel – a violação do mais sagrado templo que temos, o nosso corpo e a nossa dignidade – que precisamos nos unir. É hora de se falar em algo mais permanente que a prisão (na qual, aliás, tampouco cremos mais). Talvez seja hora de retomarmos a discussão sobre a castração química e “cortar o mal pela raiz”.
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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